11

Màu nền
Font chữ
Font size
Chiều cao dòng

11. De volta a Cuiabá, Buell Quain sofreu um ataque de malária.
Enquanto convalescia, escreveu a Ruth Benedict o relato da sua
convivência com os Tramai: "Toda morte é assassínio. Ninguém espera
passar da próxima estação das chuvas. Não é raro haver ataques
imaginários. Os homens se juntam aterrorizados no centro da aldeia — o
lugar mais exposto de todos — e esperam ser alvejados por flechas que
virão da mata escura".
Ninguém nunca me perguntou, e por isso nunca precisei responder
que a representação do inferno, tal como a imagino, também fica, ou
ficava, no Xingu da minha infância. E uma casa pré-fabricada, de madeira
pintada de verde-vômito, suspensa sobre palafitas para a proteção dos
moradores contra os eventuais animais e ataques noturnos de que seriam
presa fácil no rés-do-chão. É uma casa solitária no meio do nada, erguida
numa área desmaiada e plana da floresta, cercada de capim-colonião e de
morte. Tudo o que não é verde é cinzento. Ou então é terra e lama. Há uma
estrada de terra que chega até a escada à entrada da casa mas que dali não
parece levar a nenhum lugar conhecido. A maneira mais fácil de chegar é
de avião, que não deve ser grande, no máximo um bimotor, para poder
pousar na pista de terra aberta ao lado da casa. Do alto, quando nos
aproximamos em vôo rasante, é só o que vemos: a casa solitária com a
pista de pouso ao lado, numa grande clareira de capim alto, cercada por
todos os lados de uma floresta a perder de vista. A estrada de terra leva da
casa ao campo de pouso e depois segue direto para a mata, onde
desaparece, como tudo ali, à procura de um caminho — ou talvez num
impulso suicida. Dizem que hoje tudo mudou e que a região está
irreconhecível. A floresta tropical se transformou em campos de fazendas.
A mata desapareceu, caiu e foi queimada, mas na época impunha-se como
uma ameaça aterrorizante, a ponto de ser difícil para uma criança entender
o que os homens podiam ter ido buscar naquele fim de mundo. A casa era a
sede de uma fazenda a que chamavam Vitoriosas, se não me engano,
porque o fazendeiro, o Chiquinho da Vitoriosas, justamente, como era
conhecido na região, era dono de uma empresa de ônibus que levava o
mesmo nome. Era a fazenda mais próxima da que o meu pai tinha decidido
fundar, em 1970, no Xingu, e que batizou de Santa Cecília, em
homenagem à prima com quem vivia naquele tempo e que logo o
perseguiria com advogados, humilhada pelo engodo da própria paixão,
para reaver o dinheiro que lhe emprestara e que ele havia enfiado naquelas
terras, supostamente em gado, ao mesmo tempo que saía com outras mulheres de maneira cada vez mais descarada. A sede da Vitoriosas,
suspensa no meio do nada e da floresta, era parada obrigatória quando o
meu pai resolvia avaliar o estado das obras da estrada que pretendia abrir
no meio da selva entre as terras do Chiquinho e a Santa Cecília, e que teria
concluído não fosse o literal mar de lama que a engoliu depois da
derrubada das árvores e da passagem resfolegante dos tratores, niveladoras
e caminhões da civilização.
Não me lembro nem da cara do Chiquinho da Vitoriosas, mas
guardei a notícia da sua morte num acidente de avião. Não sei se agora
apenas imagino, mas tenho a impressão de ter visto o meu pai debruçado
sobre alguém, talvez a viúva, a lhe dar esperanças, a lhe dizer que ainda
havia chances de encontrarem o aviãozinho desaparecido fazia dias.
Lembro de uma casa escura, de gente armada, de mulheres recolhidas e
caladas, e de um céu carregado, com raios e nuvens negras, sempre que
visitávamos a Vitoriosas. Isso quando o sol não estava escondido por uma
névoa que fazia lembrar a atmosfera de um planeta inóspito em Perdidos
no espaço ou em algum filme de ficção científica. Também lembro de um
clima doentio dentro da casa, de gente acometida de malária e do barulho
das botas sobre o chão poeirento de tábuas de madeira, por cujas frestas se
via a terra vermelha do lado de fora. Entre nós, meu pai comentava que a
morte do Chiquinho era resultado da imprudência de pilotos que preferiam
voar baixo, entre as nuvens e a floresta, a ter de passar por dentro dos
cúmulos-nimbos, pelo meio das tempestades, como ele fazia, servindo-se
apenas dos instrumentos, uma vez que aqueles aviões não tinham
autonomia para subir além das nuvens, por falta de pressurização. O
problema de voar baixo era surgir de repente uma montanha pela frente,
uma elevação inesperada do relevo, e o avião acabar se esborrachando
contra as rochas e as árvores. Meu pai sempre se vangloriava de sua cau-
tela, tanto que havia mandado pintar na fuselagem do Cessna 310 uma
tartaruga — a qual chamava, como os índios, de tracajá — com uma
trouxinha nas costas e os dizeres: "Devagar e sempre".
Mas não era bem assim. Há várias histórias que, passado o pavor do
momento, entraram para o folclore familiar e que, se não depõem contra a
perícia aeronáutica do meu pai, denunciando a sua própria imprudência,
também não deveriam ser vistas como prova da sua bravura, mas antes
como resultado de uma dose de atabalhoamento na condução das questões
aéreas. Segundo relato do meu cunhado, que uma vez vinha com o meu pai
sem enxergar quase nada adiante do nariz, por dentro de um cúmulonimbo, um "CB", que era como ele chamava os pesadelos arroxeados em
forma de catedrais no meio do céu, de repente foram pegos de surpresa por
um morro mais à frente, a algumas centenas de metros, e o meu pai
imediatamente arremeteu com o bimotor numa subida vertical e apavorada
para fora da nuvem. Os dois saíram daquele mundo opaco e cheio de raios
para dentro do céu azul e ensolarado das alturas, e foi só aí, com o coração
saindo pela boca, que o meu cunhado pôde constatar o tamanho do pavor
do meu pai trêmulo e calado, com a saliva gosmenta nos lábios e ressecada
nos cantos da boca.
Também ficou famosa a vez em que, preocupado em chegar antes
das seis da tarde ao aeroporto de Cuiabá, já que seu breve não lhe permitia
pilotar à noite com instrumentos, meu pai entendeu que o operador na torre
de controle falava da hora e da necessidade de se apressar, quando na
realidade apenas o alertava sobre o fato de que uma das pistas estava em
obras. Foi justamente para essa pista que o meu pai dirigiu o avião, na
pressa de não cometer uma infração e perder o breve. Acabou aterrissando
sobre um trator num canteiro de obras esburacado, onde militares armados
já o esperavam depois de verem o avião despontar no horizonte em direção
à pista que a torre de controle lhe dissera para evitar. Meu pai foi preso
assim que pôs os pés no chão.
O avião, cheio de avarias, foi apreendido. Era início dos anos 70, e os
militares chegaram a aventar a possibilidade de que, sendo área de
segurança, o aeroporto estivesse sofrendo um ataque terrorista.
Eu mesmo participei, como espectador e vítima, de duas dessas
histórias, sendo que a menos grave foi quando meu pai se esqueceu de
fazer uma mistura de óleo, um procedimento de praxe que devia ser
realizado durante o vôo, enquanto atravessávamos já fazia quase uma hora
uma tempestade de granizo e raios, entre São Miguel do Araguaia e
Goiânia, e o motor direito congelou. Ele estava tão tenso com a situação
toda que não chegou a ver a hélice parando aos poucos, fazendo toe, toe,
toe do meu lado, e fui eu que bati no braço dele, sem conseguir dizer nada,
e apontei pela janela.
Imediatamente, lívido, ele tratou de mexer nas alavancas ao seu lado
e o motor voltou a pegar. Passou por outros apuros. Esse não foi o
primeiro, nem seria o último.
Eu devia ter dez anos quando presenciei um ataque de malária que
ele teve ao chegar uma vez a Barra do Garças, aonde fora receber dinheiro
da Sudam. Tremia descontroladamente. Achei que fosse morrer e me
deixar sozinho naquele fim de mundo de onde eu mal sabia como sair. Não
só não morreu, como escapou de outro ataque que acabou sofrendo
enquanto pilotava sozinho o bimotor sobre a selva. E eu prefiro não imagi-
nar o seu pavor e desespero.
Buell Quain também havia acompanhado o pai em viagens de
negócios. Quando tinha catorze anos, foram a uma convenção do Rotary
Club na Europa. Visitaram a Holanda, a Alemanha e os países
escandinavos. E daí em diante nunca mais parou de viajar. Mas se para
Quain, que saía do Meio-Oeste para a civilização, o exótico foi logo
associado a uma espécie de paraíso, à diferença e à possibilidade de
escapar ao seu próprio meio e aos limites que lhe haviam sido impostos por
nascimento, para mim as viagens com o meu pai proporcionaram antes de
mais nada uma visão e uma consciência do exótico como parte do inferno.
Sempre tive que acompanhá-lo a Mato Grosso e a Goiás, porque por lei
devíamos passar as férias juntos (meus pais eram separados e tinham
chegado a um acordo sobre a minha guarda e o meu sustento na justiça) e
ele precisava visitar as fazendas. Havia duas: uma no cerrado, entre o rio
das Mortes e o rio Cristalino, na região do Araguaia, na altura de São
Miguel, próxima à ilha do Bananal, e a outra no Xingu, em plena floresta
virgem. A primeira viagem que fiz à floresta foi em 1967, quando tinha
seis anos e meu pai ainda estava procurando uma fazenda para comprar.
Era esse o objetivo da viagem. Há uma foto desbotada em que apareço ao
lado dele diante do Congresso Nacional, em Brasília, onde fizemos escala
antes de prosseguir para o Araguaia. Meu pai está com um terno
amarfanhado pela viagem, e eu, à altura da cintura dele, mais pareço estar
fantasiado de caubói para um baile de Carnaval, com colete e botas
marrons. Ele articulava desde 1966, em Brasília, a compra de dois
latifúndios no sertão, por meio de títulos definitivos do governo. Era um
negócio da China. Não só pagou uma ninharia pelas terras, como passou a
receber subsídios para o projeto agropecuário que implantou a partir de
1970.
A prática foi estabelecida como programa pelo governo militar, que
sob o pretexto de desenvolvimento da Amazônia não só subvencionou a
compra de centenas de milhares de alqueires a preço de banana, como em
seguida financiou nababescamente os projetos de ocupação pelos fazendeiros — em geral, bastava derrubar a mata, plantar capim e encher
as fazendas de gado. Meu pai devia ter os contatos certos. A finalidade da
viagem era achar as terras. Originalmente, pretendia se concentrar no cer-
rado. Acho que só depois surgiu a oportunidade do Xingu, uma miragem
que ele não conseguiu recusar. Ficamos na ilha do Bananal. Na época, meu
pai ainda pilotava um monomotor.
Viajávamos os dois sozinhos sobre o fim do mundo, e eu me distraía
a folhear um manual de primeiros socorros e sobrevivência na selva, onde
se tratava dos piores horrores no caso de pouso forçado ou queda do avião,
como a descrição de um peixe minúsculo que me atormentava só de
imaginar que pudesse entrar pelo orifício do pênis e, uma vez instalado na
uretra, abrir suas escamas ou sei lá o quê, de maneira a não poder mais ser
removido, tudo com farta ilustração. O campo de pouso da ilha do Bananal
ficava ao lado de uma aldeia karajá, e quem chegava era recepcionado
pelos índios aculturados. Era um espetáculo deprimente. Havia naquele
tempo um hotel que, segundo as más línguas, fora construído por Juscelino
Kubits-chek como pretexto para promover encontros com as suas amantes.
A pista servia aos hóspedes. Em julho de 1967, o hotel tinha se
transformado em cenário de uma fotonovela exótica da revista Sétimo Céu.
Era um prédio moderno, de dois andares, que lembrava Brasília à beira do
Araguaia. Dizem que foi abandonado pouco depois e que pegou fogo.
Deve estar caindo aos pedaços, se é que ainda existe. Quando chegamos,
alguns atores da fotonovela estavam sentados no bar ao lado da recepção.
E entre eles estava o cacique karajá.
Tentava convencer o barman a lhe dar mais um copo de uísque. O
barman recusava-se e fazia troça do cacique. Os atores da fotonovela riam.
Meu pai me fez o favor de anunciar que eu era bisneto do marechal
Rondon por parte de mãe. Uma informação que, dali em diante, ele usaria
sempre que achasse necessário, como cartão de visita, toda vez que me
levava para a selva. A revelação teve um efeito quase imediato, e antes
mesmo que eu pudesse entender o que estava acontecendo, o cacique
bêbado já tinha ido à aldeia, tomado do próprio filho vários presentes que
lhe havia dado (me lembro sobretudo de um tacape e de um cocar) e agora
insistia, contra a vontade do gerente na portaria, em subir ao nosso quarto
para oferecê-los a mim em sinal de boas-vindas.
Numa das cartas que nunca mandou a Margaret Mead, escrita em 4
de julho de 1939, Quain dizia o seguinte: "O tratamento oficial reduziu osíndios à pauperização. Há uma crença muito difundida (entre os poucos
que se interessam pelos índios) de que a maneira de ajudá-los é cobri-los
de presentes e 'elevá-los à nossa civilização'. Tudo isso pode ser atribuído a
Auguste Comte, que teve uma enorme influência na educação superior
local e que, através do seu espetacular discípulo brasileiro, o já velho
general Rondon, corrompeu o Serviço de Proteção aos índios. Ainda não
consegui estabelecer a conexão lógica, mas sei que ela existe".
Meu pai logo se engraçou com uma das atrizes da fotonovela, que no
verão seguinte eu reencontraria em Petrópolis, num fim de semana em que
ele apareceu para me visitar, com ela e os dois filhos (o pai deles e ex-
marido da atriz também tinha uma casa de veraneio na cidade), e me
comprou um forte apache de plástico para aplacar a decepção que me
provocou aquele reencontro. Na ilha do Bananal, enquanto a atriz
fotografava para a revista, meu pai e eu, com o meu chapéu de Jim das
Selvas e um mau humor mais do que compreensível numa criança de seis
anos que se vê forçada a passar os dias a rondar pela mata, de jipe e em
voadeiras, sob um sol escaldante, saíamos à procura das terras que ele
pretendia comprar. Houve um final de tarde em que, ao voltarmos à ilha do
Bananal, toda a equipe da foto-novela e a família do gerente do hotel nos
esperavam para atravessarmos o rio até uma praia paradisíaca, de areia
branca, onde quem estivesse machucado (ou de calção vermelho — era
esse o folclore) ficava proibido de nadar, para não atrair as piranhas. Ainda
assim, havia cardumes de peixes mínimos que mordiscavam as pernas dos
banhistas e que a mim os adultos disseram ser filhotes de piranha,
provavelmente para me assustar. Quando não estava com o meu pai, eu
brincava com o filho do gerente do hotel, que devia ser um pouco mais
velho do que eu. Na ocasião, estava sendo organizada pelos irmãos Villas
Boas, no posto Leonardo do Parque Indígena do Xingu, uma
confraternização entre tribos inimigas que se mantinham em estado de
guerra havia anos. Os Villas Boas tentavam atrair os índios txikão para o
parque, para terror dos Waurá e Yawalapíti, que já estavam lá fazia anos.
Todos esperavam um acontecimento sem precedentes, uma
cerimônia que seria transformada em espetáculo exótico para uma platéia
de brancos. Equipes de jornalistas e fotógrafos nacionais e estrangeiros
eram esperadas no posto Leonardo, assim como autoridades militares e
demais convidados, todos transportados num DC-3 da FAB. Não sei de
quem foi a idéia. Fomos de penetras. Ou talvez o gerente do hotel tivesse
sido convidado. Saímos da ilha do Bananal bem cedo pela manhã, no monomotor do meu pai, e seguimos rumo ao Xingu, sobrevoando a floresta
e a serra do Roncador. O gerente do hotel ia na frente, no assento do co-
piloto; eu e o filho dele íamos no banco de trás. Ao sobrevoarmos o posto
Leonardo, vimos índios que nos apontavam e corriam para a pista.
O avião da FAB já estava lá. Quando pousamos, o monomotor foi
rodeado por índios, na maioria crianças que, ao verem um menino da idade
delas, imediatamente começaram a me tocar e a arrancar as minhas roupas,
encorajadas pelo meu pavor. Por mais que eu gritasse ou apelasse para o
meu pai, ele nada podia fazer, porque também estava imobilizado, cercado
de índios, e no fundo achava muito engraçado que eu estivesse sendo
levado embora — era bem provável que estivesse cheio de mim e do meu
mau humor. Os indiozinhos me carregaram. Era como se estivesse no meio
de uma correnteza. Não adiantava resistir. Pelo que pude entender, queriam
me ver nu, me deixar igual a eles. Fomos recebidos por um dos irmãos
Villas Boas, já não sei se Orlando ou Cláudio, que pediu ao meu pai que
dormisse comigo no avião. Já não tinham mais onde abrigar os visitantes e
temiam uma reação imprevista dos Txikão, que vinham de fora para o
encontro. Apesar de baixinhos e franzinos, eram muito temidos pelos
robustos índios locais. Eram considerados traiçoeiros. Atacavam as aldeias
à noite e roubavam as mulheres dos grandalhões. A mulher de um dos
chefes dos Txikão tinha sido roubada ainda menina de uma tribo dos
Waurá. Voltava depois de anos de ausência, casada. Era possível que
houvesse um confronto se a família decidisse recuperá-la.
Bastou a notícia de que os Txikão estavam se aproximando para que
os grandalhões pintados de urucum e com os cabelos cortados em forma de
cuia, entre Yawalapíti e Waurá, debandassem apavorados. Foi uma cena
grotesca. Os raquíticos vinham armados pela floresta, saíam do mato, e os
grandalhões fugiam ou se agarravam uns aos outros e se escondiam atrás
dos brancos. Naquela noite, eu e o meu pai dormimos, por segurança, no
monomotor, e na manhã seguinte acordei completamente molhado no
banco traseiro do avião. Aterrorizado com a idéia dos índios traiçoeiros e
de uma onça que supostamente estaria rondando a aldeia, não tive coragem
de levantar durante a noite. Não me lembro se tentei acordar meu pai.
Quando fomos embora no dia seguinte, ele saiu de cuecas e relógio. Os
índios ficaram com o resto. Não deixei nada meu. Estava farto daquela
gente, não queria dar nada de presente a ninguém, embora tenha saído de
mãos cheias, depois de receber os indefectíveis tacapes, arcos, flechas e cocares em homenagem ao meu bisavô, graças mais uma vez à intervenção
do meu pai.
Como sinal de despedida, ele resolveu de última hora fazer um vôo
rasante sobre o posto. Na minha inconsciência de criança, nem cheguei a
ficar com medo. Era como se estivesse na montanha-russa de um parque de
diversões. Eu pedia mais, para horror e constrangimento dos outros
passageiros, o gerente do hotel e seu filho. Só me lembro de uma massa de
índios correndo para todos os lados, aterrorizados, e do frio na barriga con-
forme descíamos de bico na direção do centro do posto. Imagino o temor
controlado do gerente do hotel e a irritação dos irmãos Villas Boas, em
terra, obrigados a aturar todo tipo de gracinhas e imbecilidades dos
visitantes.
A consciência do perigo só veio cinco anos depois. Eu estava com
onze anos. Meu pai já tinha o Cessna 310, um bimotor. Já era proprietário
de uma fazenda de sessenta mil alqueires no cerrado, ao sul da ilha do
Bananal, no rio das Mortes, à qual deu o nome de Tracajá, e da Santa
Cecília, com mais de vinte mil alqueires, em plena floresta virgem, a cerca
de quarenta quilômetros do rio Xingu, no município de São José. O
Chiquinho da Vitoriosas ainda não tinha morrido. Meu pai estava tentando
abrir uma estrada da Vitoriosas até a Santa Cecília. Saímos de caminhão
para examinar as obras, levando um mecânico de Goiânia para tentar
consertar um dos tratores. Seguimos na caçamba de um caminhão que
derrapava pelo atoleiro daquele mar de lama que chamavam com muita
boa vontade de estrada e subia e descia em ondas enormes no meio da
floresta. A estrada terminava numa clareira defronte de uma parede de
mata virgem. Conforme nos aproximávamos, fomos aconselhados a fechar
a gola e as mangas da camisa e a enfiar a bainha das calças dentro das
botas. O desmatamento deixava a selva em polvorosa. Animais e pássaros
gritavam por toda parte, e havia enxames de abelhas pretas, que cobriam os
braços dos homens. Meu pai tinha me dito para não me mexer, tentar não
me incomodar com elas e torcer para que não entrassem por baixo da
camisa ou da calça. Eu só queria sair dali. O que estávamos fazendo no
meio do inferno, por um trabalho inglório, que seria engolido em poucos
anos? A gritaria na floresta era assustadora. Esperamos o mecânico dar um
jeito no trator e voltamos para a Vitoriosas, com o objetivo de seguir de
avião até a Santa Cecília.
Naquela altura, a fazenda não passava de uma pequena clareira
cercada de selva, com uns poucos barracos e uma pista de pouso muito
vagabunda de terra. Passamos a noite numa cabana que não chegava a três
metros quadrados, feita de troncos finos de árvore espetados no chão de
terra batida, que sustentavam um telhado de folhas secas a menos de dois
metros de altura. Havia duas camas — na verdade, dois estrados de galhos
de árvores apoiados em quatro forquilhas fincadas na terra. Por entre os
troncos finos que formavam as paredes, podiam entrar cobras, lacraias e
escorpiões. A noite, fazia um frio do cão. Meu pai decidira partir bem cedo
na manhã seguinte. Acordamos antes de o sol nascer, tomamos café e
embarcamos com a bagagem. Já estava claro quando o meu pai deu a
partida nos motores, mas o sol ainda não tinha despontado por trás da
barreira de árvores. O pára-brisa estava embaçado e coberto de orvalho. Na
sua imprudência, meu pai achou que bastaria o movimento do avião
correndo pela pista para desembaçar o vidro. Não foi o que aconteceu. O
mecânico estava no lugar do co-piloto, e eu no banco de trás, distraído,
lendo um gibi. O avião correu pela pista de terra e de repente começou a
trepidar mais do que o normal. Meu pai arremeteu. Não percebi nada na
hora. A idéia era irmos até a Tracajá e de lá até Goiânia, onde deixaríamos
o mecânico e seguiríamos de volta para São Paulo. Mas meu pai logo
avisou que, ao contrário do planejado, desceríamos na Suiá Miçu, uma fa-
zenda gigantesca, um verdadeiro mundo, na época sob o controle acionário
do Vaticano, segundo o que diziam, a meio caminho entre o Xingu e o rio
das Mortes. Perguntei ao meu pai o que era aquele barulho de uma coisa
estalando na cauda do avião. Ele disse que devia ter batido contra um
pássaro qualquer e me mandou calar a boca. Não se falou mais durante a
viagem. Só ao nos aproximarmos da Suiá Miçu, quando a pista, talvez a
melhor da região, já aparecia na distância, foi que o meu pai se virou para
o mecânico e para mim e anunciou que ia desligar os motores para que o
combustível ficasse nos tanques na ponta das asas. Pediu que não nos
preocupássemos. Recomendou ao mecânico que abrisse a porta antes de o
avião tocar o solo e disse que, assim que batêssemos no chão, nós dois
devíamos nos atirar, porque o avião podia explodir. Larguei o gibi e
arregalei os olhos. Eu ainda não sabia o que tinha acontecido. Ao sair da
Santa Cecília, quando tentava decolar, meu pai fez uma barbeiragem.
Contava desembaçar o pára-brisa e não percebeu que já tinha saído da pista
e entrado na floresta. Foi quando arremeteu. Já estava com o trem de pouso
avariado e no meio das árvores. Os fios das antenas de rádio foram
cortados pelas copas das árvores. O barulho na cauda do avião era dos fios que batiam ao vento. Por pouco não nos estraçalhamos dentro da floresta.
Agora, o bimotor descia planando, com os motores desligados e o bico
levantado. Não me lembro se o mecânico abriuainda no ar a porta sobre a
asa. Eu estava em pânico. O avião bateu de barriga no chão, já que o trem
de pouso estava solto. A asa esquerda foi arrancada com o impacto, e
acabamos entrando de bico num barranco de terra do lado esquerdo da
pista. Ninguém se jogou. Ninguém se machucou. O mecânico desceu. Eu
desci com as pernas bambas. Só quando já estava no chão é que comecei a
chorar e a gritar, numa crise histérica, pedindo ao meu pai que saísse do
avião. O mais incrível é que, na minha lembrança, ele saiu de lá sorrindo.
Era um sorriso amarelo, talvez de alívio, talvez para encobrir o medo.
Logo chegaram os carros do administrador da fazenda, que depois de
constatar que ninguém tinha se machucado, nos convidou para almoçar, me
deu um calmante e mandou um dos empregados nos levar até um povoado
próximo, onde poderíamos pegar um táxi aéreo. Levamos umas quatro
horas, se não mais, por uma estrada de terra, e o único avião disponível no
pequeno campo de pouso era um fatídico Bonanza, com sua cauda em V,
reputado pela falta de estabilidade. Nunca vomitei tanto como naquela
viagem até Goiânia, onde dormi por vinte e quatro horas ininterruptas,
graças em parte aos efeitos do calmante. Quando acordei, meu pai me disse
que por pouco não tinha chamado um médico. Achou que eu estava
morrendo. No dia em que acordei, a manchete dos jornais era a tragédia de
um avião da Varig que se incendiara misteriosamente na rota de descida
para Orly, matando boa parte dos tripulantes e todos os passageiros, à
exceção de um. O jornal trazia as fotos das celebridades mortas. E de
alguma forma associei a grande tragédia ao nosso pequeno acidente, como
se houvesse alguma conexão incompreensível entre os dois. O Xingu, em
todo caso, ficou guardado na minha memória como a imagem do inferno.
Não entendia o que dera na cabeça dos índios para se instalarem lá, o que
me parecia de uma burrice incrível, se não um masoquismo e mesmo uma
espécie de suicídio. Não pensei mais no assunto até o antropólogo que por
fim me levou aos Krahô, em agosto de 2001, me esclarecer: "Veja o Xingu.
Por que os índios estão lá? Porque foram sendo empurrados, encurralados,
foram fugindo até se estabelecerem no lugar mais inóspito e inacessível, o
mais terrível para a sua sobrevivência, e ao mesmo tempo a sua única e
última condição. O Xingu foi o que lhes restou".
Comecei a procurar informações sobre os Krahô pouco depois de ter
lido pela primeira vez sobre o suicídio de Quain no artigo de jornal. Na madrugada de 25 de agosto de 1940, um domingo, um ano depois do
suicídio do etnólogo, a aldeia em que havia passado os seus últimos meses
sofreu um ataque de onze homens armados com rifles, sob o comando de
dois fazendeiros, José Santiago e João Gomes, do município de Pedro
Afonso, na época pertencente ao estado de Goiás, que arquitetaram a em-
boscada com minúcias de traição e perversidade, como vingança, para dar
uma lição aos índios que roubavam seu gado. No côm-puto final da
chacina, que também teve por alvo outra aldeia, morreram vinte e seis
índios, entre homens, mulheres e crianças. Antes de atacar, os fazendeiros
ofereceram um boi à aldeia de Cabeceira Grossa, prevendo que os índios se
reuniriam para dividir a carne. Era uma armadilha. Atacaram ao
amanhecer, quando homens, mulheres e crianças comiam distraídos. Pegos
de surpresa, os índios tentaram fugir pelo mato. Alguns passaram dias
desaparecidos. Foi o caso do velho Vicente, que ainda era um rapaz e
conseguiu escapar na correria. Quando visitei os Krahô, em agosto de
2001, ele me contou a sua versão da história (não havia conhecido Quain,
pois estava trabalhando para os brancos, no Pará, durante os meses que o
americano passou na aldeia). Mulheres foram trucidadas com crianças ao
peito. Ao serem atacados, o chefe Luís Balbino ainda pediu para falar com
os fazendeiros, mas foi assassinado pelos agressores, que pilharam a
aldeia, levando também os objetos dados por Quain. Sob pressão do Estado
Novo, os fazendeiros foram julgados e condenados, embora tenham
cumprido a pena em liberdade condicional. O episódio acabou levando à
delimitação do território krahô e à criação do posto indígena Manoel da
Nóbrega pelo Serviço de Proteção aos Índios. Os reflexos do trauma do
massacre foram imensos e po-dem ser detectados até no movimento
messiânico que se desenvolveu entre os Krahô por volta de 1952, em outra
aldeia. Um vidente, ao que tudo indica sob efeito da maconha, passou a
profetizar o desaparecimento dos brancos e a transformação dos índios em
civilizados, acontecimentos que lhe eram anunciados em experiências
sobrenaturais pelo deus da chuva. O movimento perdeu credibilidade
quando as profecias não se realizaram.
Na minha busca por informações sobre os Krahô, acabei encontrando
um casal de antropólogos que, tendo estudado e vivido entre eles por mais
de dois anos, decidiu criar uma organização independente de assistência
aos índios, com subsídios nacionais e internacionais. Marcamos um
encontro na sede da organização em São Paulo. Eu lhes contei o que procurava e, para minha surpresa, me disseram que conheceram, já idoso,
um dos dois índios que acompanhavam Buell Quain na noite do suicídio.
No tempo em que viveram entre os Krahô, os dois antropólogos mais
de uma vez foram abordados pelo velho João Canuto Ropkà, a lhes
perguntar se não tinham ouvido falar do dr. Quain Buele, o etnólogo
americano cuja morte ele havia presenciado.
Demoraram para gravar o nome. Ouviam as histórias do velho sem
lhe dar muita atenção, o que o deixava ao mesmo tempo espantado e
contrariado com a ignorância dos brancos a respeito de um dos
acontecimentos mais extraordinários e traumáticos de sua vida. Para o
velho, era incrível que brancos não soubessem quem tinha sido o dr. Quain
Buele, me disse o casal de antropólogos quando nos encontramos, numa
sala repleta de pilhas de papéis, arquivos e de mapas com demarcações de
terras indígenas espalhados pelas paredes.
Aquela altura, eu já estava completamente obcecado, não conseguia
pensar em outra coisa, e como todos os que eu havia procurado antes, eles
também não quiseram saber por quê. Ninguém me perguntava a razão. Eu
dizia que queria escrever um romance. Diante do meu entusiasmo, que a
outros podia parecer doentio e inexplicável, acho que os dois de início
ficaram apenas um pouco ressabiados. Eu queria visitar os Krahô e,
sepossível, o local do suicídio. Eles ouviram a minha história em silêncio,
trocando de vez em quando olhares que podiam ser de desconfiança ou
simplesmente de cumplicidade. É possível que a princípio quisessem se
assegurar das minhas intenções em relação aos índios. O antropólogo me
disse que, por coincidência, estava com uma viagem marcada para
Carolina. Organizava um encontro entre os representantes de vários grupos
timbira daquela área — não só os Krahô, mas também os Canela e os
Gavião. Disse que eu podia ir com ele, se quisesse. Tinha prometido aos
Krahô levar o filho mais velho para a aldeia quando acabasse a reunião em
Carolina. O rapaz, de vinte e poucos anos, sobrevivera a uma operação
para resolver um problema congênito no coração. Depois de vários
adiamentos ao longo da infância e da adolescência, resolveram por fim
operá-lo. A cirurgia, que não era simples nem sem riscos, foi bem-
sucedida, e os índios, em agradecimento, queriam comemorar o
renascimento do menino, que conheciam desde pequeno.
Por uma estranha coincidência, já que a assembléia timbira acabou
sendo marcada para os dias 31 de julho e 1º de agosto, a nossa ida para a aldeia teria que ficar para 2 de agosto, o mesmo dia em que Buell Quain se
suicidara, sessenta e dois anos antes, quando tentava fazer o caminho
inverso. O antropólogo e o filho já estavam havia alguns dias em Carolina
quando cheguei, depois de um vôo com escalas em Brasília, Palmas e
Araguaína, onde me esperava um motorista de táxi que não parou de falar
um segundo durante o percurso de pouco mais de duzentos quilômetros,
por uma estrada quase inteiramente asfaltada, que cortava o cerrado em
meio a chapadas, sob o sol inclemente das duas da tarde.
Carolina é um lugar morto, como disse Quain ao desembarcar ali
pela primeira vez, mas que tem a sua graça, ainda mais hoje, por ser
resultado de uma tranqüila decadência e abandono, como se tudo tivesse
parado e sido preservado no tempo. A estrada que vem de Araguaína
desemboca em frente à cidade, do outro lado do Tocantins, no que a rigor
não passa de um povoado, não mais que umas poucas ruas, mas ao qual
deram o nome extraordinário e inverossímil de Filadélfia. Quando o rio,
caudaloso mesmo na estiagem, se abriu à nossa frente, conforme
descíamos para pegar a balsa, e eu pude ver o pequeno porto na margem
oposta e o estaleiro Pipes, fui imediatamente tomado por uma sensação
sinistra de reconhecimento, como se eu já tivesse avistado aquela paisagem
antes. Era exatamente o mesmo cenário de fundo que eu tinha visto na foto
da chegada de Quain à cidade, publicada na primeira página da edição de
18 de agosto de 1939 d'0 Globo, que noticiava com algum atraso a morte
do etnólogo: "Flagrantes sensacionais do cientista suicida nas selvas do
Brasil".
Quem sobe do porto tem que passar pela avenida Getúlio Vargas,
uma alameda de mangueiras que termina na igreja matriz. A pousada onde
me hospedei fica a poucos metros da antiga casa térrea de Manoel Perna,
hoje desfigurada pelos azulejos e esquadrias de alumínio. No final da tarde,
os moradores acalorados põem as cadeiras na calçada defronte das casas e
ficam conversando noite adentro. Foi na casa de Manoel Perna que Buell
Quain encontrou um interlocutor atento nas noites que passou em Carolina
ao desembarcar em março, e depois em sua passagem pela cidade no final
de maio e início de junho, quando veio buscar cartas, dinheiro e
mantimentos, e comemorar o seu aniversário. Foi para lá que a comitiva de
índios se encaminhou dois meses depois, para anunciar a tragédia e
entregar os pertences do morto ao engenheiro.
Mal vi o antropólogo no dia em que cheguei. Ele estava muito
ocupado com os índios. Combinamos nos encontrar no dia seguinte à hora
do almoço, nos arredores da cidade, onde estavam reunidos os Krahô. Ele
prometera me apresentar um velho que havia conhecido Quain. Fiquei com
a manhã livre para ir atrás das pistas de uma eventual investigação sobre a
morte do etnólogo, algum documento que tivesse restado arquivado nos
cartórios ou no fórum da cidade. Não achei nada entre os papéis que se
esfacelavam como pó entre os dedos, processos de homicídios, crimes
passionais e por dinheiro, brigas familiares e suicídios, esmagados em
pastas empoeiradas no alto de estantes esquecidas em cômodos sem
janelas, verdadeiras fornalhas nos fundos de casas antigas e térreas no meio
do sertão. Perambulei pela cidade deserta. Fazia um calor de quarenta
graus. Acabei na igreja matriz. A porta estava fechada, mas alguém que
passava de bicicleta, ao me ver tentando entrar, sugeriu que eu procurasse
o padre numa casa verde do outro lado da rua. Fui recebido por um
assistente da paróquia. Perguntei se era possível visitar a igreja e subir na
torre. Queria tirar uma foto panorâmica da cidade. O rapaz me deu a chave
de uma porta lateral e pediu que a deixasse pendurada num prego logo à
entrada da paróquia, se porventura não o encontrasse ali na minha volta, ao
terminar a visita à igreja. Ele estava prestes a sair para o almoço. A nave
estava em obras, e o interior da torre parecia inacabado. Havia pedaços de
madeira por todos os lados. As paredes eram de tijolo aparente, sem
revestimento, e havia uma escada de cimento que subia por elas,
contornando o vão de cerca de dois metros de largura.
Comecei a subir sem maiores problemas. Sempre senti uma certa
aflição de altura, que, no entanto, nunca tinha chegado a assumir contornos
de fobia. Conforme eu subia, notei que a espessura dos degraus de cimento
ia diminuindo com a altura. Um trabalho porco de alvenaria. A impressão
era que no alto a escada fininha não sustentaria mais o peso humano. Não
havia corrimão, e eu comecei a me esgueirar pelas paredes, suando já sem
saber se de calor ou de medo. Evitava olhar para o vão central e para baixo.
De repente, levantar a perna para alcançar o degrau seguinte passou a ser
um esforço, e aos poucos eu me vi engatinhando pelo cimento irregular.
Quando por fim cheguei ao campanário, descortinou-se à minha frente uma
paisagem extraordinária. Havia a avenida Getúlio Vargas, com as copas de
suas mangueiras centenárias e, à direita, o Tocantins, que corria caudaloso
pela mata na direção das chapadas ao longe. Volta e meia uma figura
solitária passava lá embaixo, escondida sob uma sombrinha. Eu estava só.
Não se ouvia nada além do vento. Nunca havia sofrido de vertigem, e
era como se agora tivesse pela primeira vez a consciência da minha falta de
controle sobre o meu corpo, como se uma força exterior à minha vontade
pudesse me atirar de uma hora para outra de lá de cima. Em algum lugar ao
sul daquela vastidão toda, estavam enterrados os restos de Buell Quain. Fiz
as fotos e desci sentado pelas escadas, um degrau por vez. Devolvi a chave
ao assistente do padre, que ainda estava na casa paroquial e não esperava
me rever tão cedo. Não contei a ninguém sobre a minha ida à igreja. Ao
meio-dia, como combinado, peguei um táxi e fui à assembléia timbira,
organizada num caramanchão a dezoito quilômetros da cidade, depois de
um areai à direita de quem segue pela estrada que vai para Imperatriz, num
lugar chamado Urupuxete. Minha idéia era conversar com o velho Diniz, o
único Krahô vivo que conhecera Quain, quando ainda era menino, e que
podia me falar sobre o local em que o etnólogo fora enterrado. O velho não
vivia na aldeia para onde o antropólogo estava me levando. A assembléia
era a única ocasião que eu teria para entrevistá-lo.
Cheguei com os índios almoçando. O velho Diniz estava sentado
num banco comprido, à extremidade de uma mesa grande em que uns vinte
comiam macarrão com arroz e feijão. O filho estava a seu lado. Era um
sujeito de cara marcada, alto, que o acompanhava por toda parte. Os dois
estavam sem camisa, de short e sandália havaiana.
Assim que o velho terminou o almoço, o antropólogo aproveitou para
nos apresentar. Sentamos num canto do caramanchão e logo fomos
cercados por outros índios curiosos e desconfiados. No começo, achei que
já sabiam o que eu queria e estavam ali para me intimidar e dar apoio ao
velho, mas aos poucos fui compreendendo que não sabiam de nada.
Estavam tão curiosos quanto eu. Eram jovens, sabiam que alguma coisa
séria, que podia prejudicá-los, tinha acontecido num passado remoto, mas
não sabiam exatamente o quê. Se o cercavam, era ao mesmo tempo para
protegê-lo e controlá-lo, para garantir que não revelaria coisa nenhuma, se
é que havia algo a ser revelado. Tirei o gravador do bolso. Foi o tempo de
o velho apontar para o aparelho e dizer sem a menor cerimônia: "Estou
precisando de um desses". Fiquei sem ação. Olhei para o antropólogo,
desamparado. Mal acabava de chegar e já não sabia como reagir. "E o
único que eu tenho, e eu preciso dele para traba-lhar", respondi, seguindo
os conselhos que o antropólogo havia me dado sobre como agir em relação
aos bens pessoais de trabalho que eu não quisesse deixar pelo caminho, já
que teria de abrir mão de todos os outros que me pedissem, para não parecer grosseiro e evitar o mal-estar de eventualmente ser roubado. Mas o
velho Diniz, percebendo o meu constrangimento, não se deu por vencido:
"Você não entendeu. Não quero o seu gravador. Quero um igual a esse".
Tentei me manter firme: "E o único que eu tenho". Ao que o velho rebateu:
"Lá em São Paulo você compra um igualzinho e manda pelo correio".
A conversa mal tinha começado e já começava mal. O antropólogo
veio em meu auxílio. Interrompeu aquele diálogo que de outro modo não
teria fim — já que tanto eu como o velho sabíamos o que o outro estava
dizendo e não queríamos entender — e perguntou ao Diniz sobre a história
do "etnólogo americano", como quem não quer nada, como se aquilo
tivesse lhe passado de repente pela cabeça e não fosse o motivo da minha
presença ali. O início daquele encontro e a evidência da minha falta de tato
me deixaram tão sem ação que não consegui ligar ou não me lembrei de
ligar o gravador quando o velho Diniz respondeu: "Cãmtwyon". O quê?
Olhei para o antropólogo à cata de uma tradução e deparei com seus olhos
igualmente cheios de surpresa, cumplicidade e algum entusiasmo. "E o
nome!", ele me disse, excitado. "E como eles chamavam o americano."
Pedi que ele repetisse. O velho repetiu, e o antropólogo escreveu no meu
bloco de anotações. "O que significa?", eu queria saber. Mas ninguém
sabia ao certo. O velho só repetia: "Cãmtwyon, Cãmtwyon". Passei o resto
da viagem tentando encontrar alguém que me decifrasse o significado
daquele nome. Dois dias depois, quando chegamos à aldeia, Sabino Côjam
e Creuza Prumkwyi, que entre os jovens formavam o casal mais ativo e in-
teressado no estudo da própria língua, "os intelectuais da aldeia", como
tinha brincado o antropólogo ao apresentá-los a mim ainda em Carolina,
me disseram que "twyon" queria dizer lesma, o caracol e seu rastro. O
antropólogo já havia me dito que "cãm" era o presente, o aqui e o agora,
mas ninguém conseguia saber o sentido da combinação daquelas duas
palavras. O antropólogo me explicou que, ao contrário do que costumam
pensar os brancos, os nomes dos índios nem sempre querem dizer alguma
coisa e sobretudo nada têm a ver com a personalidade da pessoa nomeada.
Fazem parte de um repertório e são atribuídos ao acaso. Eu teria que
voltar para São Paulo sem saber o que significava aquele nome. Mas não
conseguia aceitar que não revelasse alguma coisa sobre o próprio Quain,
que não houvesse nenhuma relação entre o nome e a pessoa. Decidi-me por
uma interpretação selvagem e um tanto moral: "Cãmtwyon" passou a ser,
para mim, ao mesmo tempo a casa do caracol e o seu fardo no mundo, a
casca que ele carrega onde quer que esteja e que também lhe serve de abrigo, o próprio corpo, do qual não pode se livrar a não ser com a morte, o
seu aqui e o seu agora para sempre. "Cãmtwyon" passou a ser para mim o
rastro do caracol: não adianta fugir, aonde quer que você vá estará sempre
aqui. A imagem me fez lembrar um texto de Francis Ponge sobre os ca-
racóis: "Aceita-te como tu és. De acordo com os teus vícios. Na proporção
da tua medida".
"Foi Craviro quem lhe deu o nome", completou o velho.
Luís Balbino, o chefe da aldeia que seria assassinado no massacre
um ano depois da morte de Quain, estava provavelmente entre os índios
que posaram ao lado do etnólogo sobre a asa do hidroavião da Condor no
dia da sua chegada a Carolina. Foi ele quem o levou para a aldeia. Quain
comprou muita coisa em Carolina: comida, brinquedos de presente, arma e
munição na loja do comerciante e fazendeiro Justino Medeiros Aires, um
dos "intelectuais" a que o antropólogo havia se referido na carta que
escreveu a Ruth Landes na manhã de sua partida para a aldeia. Justino
tinha sido vice-presidente do Grêmio Literário Carolinense na juventude.
Era dele um dos discursos em homenagem a Humberto de Campos na
cerimônia a que o etnólogo assistiu em 8 de março de 1939: "Humberto, o
adolescente". "Foi Justino quem deu a munição para o massacre dos
Krahô", disse o velho Diniz. Ao chegarem à aldeia, Balbino indicou ao
antropólogo que ficasse de início na casa de Mundico, até que erguessem
uma cabana para ele. O americano falava mais com Balbino e Mundico,
porque eram os que melhor dominavam o português. Mundico tinha sido
levado por um pastor para Ita-cajá, onde fora educado antes de voltar à
aldeia. Fiquei na dúvida se não era dele (do pastor ou do próprio Mundico)
que Buell Quain estava falando no relatório que deixou sobre os Krahô ao
mencionar "a influência de um homem particularmente sofisticado de trinta
e cinco anos que ensinava danças brasileiras aos índios". Diniz era apenas
um menino que acompanhava os passos do antropólogo com curiosidade.
Observava tudo. A aldeia tinha se instalado fazia pouco tempo
naquele lugar, que chamavam Cabeceira Grossa. Quain recenseou duzentos
e dez indivíduos. No dia seguinte à sua chegada, foi ao rio tomar banho, e
Diniz, que o espreitava, o viu raspar a cabeça. O etnólogo não comia com
os índios e não aceitava a comida deles. Não comia beiju. Tinha o seu
próprio arroz. Uma vez, ajudou num parto, deu nome ao recém-nascido e
trouxe presentes. Mas não costumava participar de nada. Escrevia por dias
inteiros. "Fumava feito um doido. Fumo de corda", disse o velho. Bebia? "Não. Não bebia." Tocava discos para a aldeia e cantava. Havia um menino
que cantava para ele as canções da aldeia. "Chamava-se Zacarias. Está
morto", disse o velho. Perguntei se ele sabia por que Buell Quain havia se
matado. "Acho que ficou louco depois que recebeu umas cartas. Disse que
a mulher tinha traído ele com o irmão. Daí para a frente só arrumava suas
coisas, não fazia mais nada, nem falava com ninguém. Um dia disse que ia
embora, não muito tempo depois de ter recebido as cartas. Contratou dois
rapazes, João Canuto e Ismael — estão todos mortos —, foi até o pátio e se
despediu. Saíram de manhã." As contradições entre a versão oficial e o
relato do velho Diniz dizem respeito sobretudo às datas e à sincronia dos
acontecimentos. Segundo o velho, os três chegaram no final da tarde a um
brejo, um lugar onde havia água, um córrego provavelmente, e o etnólogo
pediu para parar. Disse que não podia seguir emfrente, estava cansado
demais.
Achou a paisagem bonita, "um lugar encantador para a sua morada",
segundo relato de Manoel Perna a dona Heloísa, com base no que os índios
lhe contaram ao chegar a Carolina uma semana depois, apreensivos, e o
que o representante local do Banco do Brasil, Carlos Dias, confirmou na
carta que mandou para o Rio de Janeiro, com a diferença de que na versão
do velho Diniz tudo teria acontecido logo na primeira noite. Se é que
saíram mesmo da aldeia no dia 31, e a julgar pelos noventa quilômetros
que ainda tinham pela frente até Carolina, já haviam andado três dias,
contando cerca de trinta quilômetros diários. Segundo a versão oficial, o
antropólogo se matou na noite do dia 2, embora em uma de suas cartas a
mãe fale da morte do filho no final de uma tentativa inglória de chegar à
civilização depois de quatro dias de caminhada. "Eles pousaram no mato.
Ele disse que já não agüentava continuar. Os dois rapazes fizeram para ele
uma barraca de palha", disse o velho Diniz. Foi aí, no final da tarde e noite
adentro, que Buell Quain escreveu as últimas cartas, sempre "chorando
copiosamente", segundo o RELATO.DE Manoel Perna. Entregou um bilhete a
João Canuto e mandou que ele o levasse até a fazenda mais próxima. O
índio obedeceu. O outro rapaz teria ficado com o etnólogo, dormindo.
Também há algumas contradições internas no relato de Diniz, o que é
normal para alguém que apenas ouviu a história na infância e a repete mais
de sessenta anos depois sem nada ter presenciado. Segundo ele, por exem-
plo, Quain "foi se cortando todo, ainda de dia, descendo sangue" e depois
"queimou dinheiro", enquanto escrevia suas cartas, o que o faz concluir
que o antropólogo tenha ficado louco. Na versão oficial, o etnólogo teria queimado todas as cartas que recebera, não deixando nenhuma pista das
supostas razões que o teriam levado ao suicídio. "Da correspondência
recebida e que tanto mal lhe causou, nada disse a ninguém e nunca a
revelou aos índios, e depois de lida, queimou-a, reduzindo-a a cinzas",
escreveu Carlos Dias, o banqueiro de Carolina, ao prestar contas a Heloísa
Alberto Torres. Quain se cortou no pescoço e nos braços. Mas se começou
a se mutilar ainda de dia, como me disse o velho Diniz, como é que não foi
visto pelo índio Ismael, que teria ficado ao lado dele enquanto o outro tinha
ido levar seu bilhete à fazenda mais próxima? Nos relatos oficiais, Ismael
estava dormindo e fugiu ao acordar e deparar com a cena dantesca de
Quain todo ensangüentado. João Canuto não sabia o teor do bilhete que
levava para Balduíno, proprietário da fazenda Serrinha. Balduíno tinha
saído quando o índio chegou.
Ninguém na fazenda sabia ler. No bilhete, o antropólogo pedia pá e
enxada para cavar uma sepultura, pois queria ser enterrado ali mesmo, "no
lugar onde ficasse morto". Ao voltar para o acampamento sem pá nem
enxada, João Canuto o encontrou todo cortado com navalha e
ensangüentado. Horrorizado, implorou ao etnólogo que parasse de se
maltratar, que não fizesse aquilo, que não morresse. Ficou atônito diante do
estado deplorável do jovem americano. Perguntou por que ele estava se
cortando, e o tresloucado respondeu que "precisava amenizar o sofrimento,
extinguir a sua dor cruciante", já não podia seguir em frente, não tinha cara
para chegar a Carolina.
Nenhum dos relatos deixa claro se a vergonha a que se referia em seu
desespero dizia respeito ao fato hipotético de ter sido traído pela mulher ou
se não podia mais encarar o mundo agora que já estava todo cortado,
depois da sua tentativa intempestiva de suicídio. Como se, ao ver o índio
de volta, por um lapso tivesse recuperado a consciência, depois do seu ato
de loucura, e percebesse que já não podia voltar atrás.
Assustado, João também fugiu. Voltou à fazenda Serrinha em busca
de ajuda. Quando retornou na manhã seguinte, acompanhado pelo
fazendeiro Balduíno e por outros vaqueiros, encontrou o etnólogo
pendurado numa árvore arqueada, sobre uma poça de sangue. "Ele se
enforcou com a corda da rede num pau grosso, inclinado, quando os índios
fugiram", disse o velho Diniz. Foi enterrado ali mesmo, como havia
pedido. Abriram a cova e, depois de fechada, marcaram a sepultura com
talos de buriti.
Nunca nenhuma polícia ou autoridade foi ao local. O corpo não foi
exumado. Não há nenhum inquérito arquivado em nenhum dos cartórios ou
no fórum de Carolina ou Pedro Afonso. Na delegacia de Carolina, os
processos anteriores a1980 foram queimados. Os pedidos de Heloísa
Alberto Torres para que marcassem a sepultura no caso de algum dia a
família querer prestar uma homenagem ao morto nunca foram atendidos.
Pelo que se sabe, ninguém nunca voltou lá.
Quain não tinha nenhum irmão. Antes de viajar para Carolina, no
início de agosto, tentando localizar a família de Manoel Perna, acabei
achando na lista telefônica a filha mais velha, Raimunda, que vivia em
Miracema do Tocantins. Ela me disse que, pelo que os índios relataram ao
seu pai, a razão do suicídio de Quain tinha sido a descoberta de que a
mulher o teria traído com o cunhado. Foi um choque ouvir aquilo pela
primeira vez, e ainda mais quando tive em mãos a informação de que, entre
as cartas que deixou ao se matar, havia uma para o marido da irmã — e
nenhuma para a própria ou para a mãe. Quando relatei o caso à antropóloga
que me despertara para a história com seu artigo de jornal, ela me alertou
sobre o fato de os termos irmão e cunhado poderem ter, entre os índios, um
sentido simbólico ou classificatório, ou seja, estar ligados à transmissão do
nome, e nada terem a ver com o parentesco .consangüíneo. Irmão ou
cunhado, segundo ela, poderia ser apenas um amigo, alguém do círculo de
relações de Quain. E eu tive de lembrar a ela que, para início de conversa,
até onde nós sabíamos, não havia nenhuma mulher. Quain podia se dizer
casado para alcançar seus objetivos práticos e proteger a sua vida privada
(só podia ser esse o caso da menção do seu estado civil no pedido de
autorização de pesquisa que enviou ao Conselho de Fiscalização das
Expedições Artísticas e Científicas logo que chegou ao Brasil, assim como
do que dizia aos índios, para evitar perguntas ou situações
constrangedoras), mas no íntimo também podia estar se referindo a outra
pessoa — e por que não à própria irmã?
Um amigo descrente a quem acabei narrando a história me diria mais
tarde, rindo: "É impossível. Seria muito rodriguiano", fazendo referência às
situações incestuosas das peças de Nelson Rodrigues. De fato, a sobrinha e
o sobrinho de Quain nasceram em 1928 e 1932, respectivamente, o que
significa que a irmã já estava casada desde a adolescência do futuro
etnólogo,ou seja, o cunhado já fazia parte da família havia mais de dez
anos quando Buell se matou, e dificilmente alguma novidade no
comportamento dele poderia servir de motivo para o suicídio do antropólogo. A idéia de que o cunhado tivesse traído a irmã de Quain com
outra mulher nessa época, ainda que não possa ser descartada, também não
é das mais plausíveis, pelo menos como motivo para o suicídio.
Logo após a morte de Buell, sua mãe vai passar as festas com a
família da filha no Oregon, e nada parece transparecer em nenhuma de
suas cartas, embora também não seja uma mulher determinada a enxergar a
verdade do que a cerca ou a deixar que os outros a vejam. De qualquer
jeito, é difícil pensar que tentaria se refugiar da tristeza e da solidão se
aproximando da presumida causa do suicídio do filho. Não é possível que,
se havia alguma coisa, nada tenha transparecido em nenhum gesto, em
nenhuma palavra.
Não deixa de ser um mistério que entre as sete cartas escritas por
Quain nas horas que precederam o suicídio uma fosse endereçada ao
cunhado. O etnólogo não escreveu à mãe ou à irmã. Apenas aos homens da
família. E possível também que fossem cartas em que pedia ao pai e ao
cunhado que cuidassem da mãe e da irmã, agora que ele não poderia mais
zelar por elas. Mas a idéia de uma relação ambígua com a irmã, embora
imaginária, nunca mais me saiu da cabeça, como uma assombração cuja
verdade nunca poderei saber.
No dia 13 de setembro de 1939, Marion Quain Kaiser, a irmã de
Buell, escreveu, de Chicago, uma carta estranhíssima a Ruth Benedict. "Já
que minha mãe tem se correspondido com a senhora, não senti que havia
necessidade de lhe escrever. Mas a sua carta que chegou hoje endereçada à
minha mãe me convenceu de que preciso esclarecer a questão do
testamento de Buell, se eu puder. Em primeiro lugar, meu pai, que lhe
escreveu de Seattle, logrou afastar-se mais ou menos da família ao se
divorciar da minha mãe de maneira insensata no último inverno. Nunca se
interessou pelo trabalho ou pelos objetivos de Buell. Temo que essa
tragédia não o tenha atingido como a nós. Entretanto, o fato de Buell
desejar que seus investimentos fossem repassados à senhora preocupou o
meu pai, já que ele sempre se importou muito com DINHEIRO."
Mais uma vez, depois da morte de Quain, a questão era o dinheiro.
Na carta que deixou para Ruth Benedict ao morrer, pedindo ao mesmo
tempo que por segurança ela a desinfetasse antes de lê-la, assim como
alertou dona Heloísa na carta que lhe escreveu na mesma circunstância e
ocasião ("Estou com uma febre que pode ser contagiosa. Esterilize esta carta"), o etnólogo dizia: "Vou morrer. Desculpe-me
por ter fracassado tão desafortunadamente no projeto brasileiro depois de
tanto tê-la preocupado. Mas tenho certeza de que há males que vêm para
bem. Muito trabalho ainda pode ser feito no Brasil — desejo boa sorte e
todo o meu afeto a você pessoalmente. Preciso lhe pedir (me desculpe por
isso) que, à exceção dos quatro mil que desperdicei no Brasil e que lhe
pertencem, meu dinheiro seja entregue à minha irmã e à minha sobrinha,
que estão quebradas e precisam dele. Você receberá esta carta bem depois
da minha morte. Os índios estão a salvo, pelo que fico muito feliz".
A salvo de quê? Ou de quem?
Boa parte do que o etnólogo deixou vinha de um seguro. Na carta
que escreveu a Benedict, Marion se mostrava irritada com a idéia de que
algo em sua correspondência com o irmão o tivesse levado ao suicídio:
"Não posso entender o que deu em Buell para achar de repente que eu
precisava do dinheiro dele. Só espero que o relato sobre as cartas que
recebera e que o deixaram transtornado seja falso. Mas a nota que ele lhe
enviou dá a entender que fui eu a causa que o levou a decidir que ele seria
mais útil a todos se estivesse morto. Sei que normalmente Buell não seria
tão tolo. Fico doente só de pensar que alguma bobagem que eu tenha
escrito possa ter desencadeado tudo. O fato de que nenhum de nós
provavelmente jamais conhecerá os fatos torna ainda mais difícil nos
desembaraçarmos deles. Não estou quebrada e certamente não estou
desesperadamente necessitada de fundo nenhum. E Buell também sabia
disso muito bem".
Marion exortava Ruth Benedict a ficar com o dinheiro e a usá-lo na
pesquisa antropológica, como queria o irmão. "Pelomenos, o trabalho de
Buell será publicado, e talvez outras pesquisas possam ser realizadas com o
dinheiro dele." Anexou à carta um documento manuscrito em que cedia a
Ruth Benedict todo o direito de beneficiária dos investimentos do irmão.
"Meu pai é bem capaz de forjar um sofrimento primoroso em situações em
que haja algo a ganhar. Por favor, não deixe que ele ou qualquer outra
pessoa mude o rumo da lei."
Saímos de Carolina pela manhã, numa caminhonete com tração nas
quatro rodas. O antropólogo ia na frente (era ele quem dirigia), ao lado de
um Krahô cafuzo e de sua mulher branca, os três na cabine coberta,
protegidos do sol e da poeira. Atrás, na carroceria aberta, íamos eu, o filho
do antropólogo e um grupo de dez índios, entre mochilas, malas, mantimentos, sacos plásticos com pedaços de carne exposta ao sol e outras
traquitanas. Eu ia em pé, em silêncio, com os olhos fixos no horizonte, já
que em algum lugar vários quilômetros à nossa direita, a seguir o mapa não
muito preciso ou detalhado que eu tinha trazido, ficava o túmulo de Buell
Quain, esquecido no meio do cerrado, de onde o sol, os ventos e as chuvas
havia muito deviam ter varrido os talos secos de buriti.
Viajamos durante cinco horas pelo cerrado, atravessando rios e
areais. A certa altura, a trilha de terra começa a seguir paralela ao rio
Vermelho, que no final é preciso cruzar a pé, com água acima da cintura e
as malas na cabeça. Mas aí já estávamos a quinhentos metros da aldeia
Nova. A aldeia inteira nos esperava na margem do rio.
Ouviram o barulho do carro. Os índios ouvem tudo. O rio Vermelho
é verde. Os índios costumavam beber aquelas águas, pescar e se banhar
nelas, até o dia em que começaram a cair doentes, um depois do outro, e
foram morrendo sem explicação.
Alguns conseguiram chegar à cidade e morreram no hospital, diante
da perplexidade e incompreensão dos médicos. Foi quando decidiram parar
de usar a água do rio Vermelho e passaram a se banhar e beber em um
córrego que passava do outro lado da aldeia e a pescar numa lagoa distante.
Com o tempo, descobriram a causa do envenenamento do rio Vermelho.
Um hospital, construído rio acima, em Recursolândia, estava despejando o
lixo hospitalar naquelas águas. Foi o que me contaram logo que cheguei e
depois ficaram me olhando calados, com olhos mendicantes, como se eu
tivesse o poder de resolver alguma coisa.
Antes de sairmos de Carolina, perguntei ao antropólogo onde é que
eu ficaria alojado e ele me disse que os próprios índios decidiriam ao
chegarmos à aldeia. Antes mesmo de cruzarmos o rio, um dos Krahô que
vinham na carroceria da caminhonete se adiantou e disse que eu ficaria na
sua casa. Chamava-se José Maria Teinõ e tinha alguma coisa de
guerrilheiro mexicano do começo do século XX, de bigode, pele muito
escura e cabelo ondulado até os ombros. Um menino franzino com os
olhos muito vivos o esperava. Era seu filho. Nunca soube o nome do
menino ou a idade (devia ter por volta de dez anos), embora tenha sido ele
quem de alguma forma chegou mais perto de me dizer algo próximo da
verdade. Quando me dei conta, ele já tinha pegado a minha mochila pesada
e atravessado o rio, com ela na cabeça e água quase até o pescoço, e depois
ribanceira acima até a bicicleta que deixara no alto da margem oposta. Agia sob as ordens do pai, meu anfitrião, e apesar das minhas reclamações
ao ver a cena grotesca do menino magro e franzino carregando a minha
mochila e eu, um marmanjo, sem nada nas mãos. Para eles era uma
maneira de nos agradar. Estávamos cercados de dezenas de índios e índias
que diziam coisas que eu não entendia e riam, entre pudicos e curiosos.
Do alto da margem oposta à da estrada, são uns quinhentos metros
até a aldeia, formada por vinte casas de adobe e teto de palha dispostas em
torno de um pátio circular. O desenho é solar, com caminhos de terra
batida que ligam, como raios, o pátio central às casas. Havia poucas ár-
vores, que eles mesmos plantaram. Estavam ali fazia apenas oito anos. A
aldeia anterior tinha se desmembrado quando um grupo decidiu se mudar
para a aldeia Nova e o resto, discordando do sítio escolhido, juntou-se à
aldeia do Rio Vermelho, que tínhamos avistado de longe, no caminho. O
sítio anterior foi abandonado por ter se tornado infértil. Não sei o quanto
havia de superstição naquilo. Diziam que a terra não prestava mais. Fala-
vam do número de índios que ali estavam enterrados. Ao me ver, a mulher
de José Maria, Antônia Jàtcaprec, fez cara feia. Depois me disseram que
não era nada pessoal. Parecia brava e mal-humorada. Era uma mulher
muito magra, com as bochechas chupadas e os lábios finos. A minha visita
significava que teriam que remanejar a ocupação da casa, liberando um dos
quartos para mim. Quando entrei, senti o cheiro pestilencial do peixe seco
pendurado num barbante no meio da sala. Era um cheiro que se entranhava
em tudo. E que, já no segundo dia, em vez de me acostumar a ele, eu não
podia mais suportar nem de longe.
Nove pessoas dormiam na casa. Como era tempo de seca, o verão
deles, o casal dormia num jirau debaixo de um alpendre lateral. As crianças
ficavam em redes na sala, onde também estavam pendurados os peixes
secos com cheiro de podre. Sobravam mais dois quartos. Num deles,
ficavam as duas filhas mais velhas com suas crianças de colo. Não entendi
direito onde estavam os maridos, se é que havia. Pendurei a minha rede no
outro quarto. O chão era de terra batida. As noites eram um festival de sons
íntimos, roncos, peidos e choros de crianças. Na sala, os meninos nas redes
se debatiam em pesadelos. Na última noite, outra filha do casal e o genro,
que estavam em viagem quando cheguei, juntaram-se às duas irmãs e seus
filhos de colo, amontoados no quarto ao lado do meu. E ao choro das
crianças somaram-se os gemidos do sexo.
No final da tarde em que chegamos, logo depois de me instalar, saí à
procura do antropólogo e do seu filho, que ficaram em outra casa.
Encontrei-os de short e sandália havaiana (em Roma como os romanos),
com os corpos pintados de urucum, sentados em frente à casa do pajé,
Afonso Cupõ, um sujeito enorme, sempre sorrindo, com cara de bonachão,
e que em geral não dizia nada mas que, no dia seguinte, bêbado, acabou me
encurralando num canto e me fez prometer que lhe daria cinqüenta reais
antes de ir embora. Um dia depois, para minha sorte, já não se lembrava de
nada. A mulher, Cajari, estava deitada numa esteira estendida no chão de
terra batida. Era como se estivesse conversando com os amigos na praia. E
os filhos Leusipo Pempxà e Neno Mãhi, dois homens fortes de vinte e
tantos anos, ouviam a conversa em silêncio, chutando os cachorros
sarnentos e esqueléticos que às vezes se aproximavam. Chutar cachorros é
um dos costumes mais notáveis da vida cotidiana na aldeia, reproduzido
por todos desde a mais tenra idade até a velhice. Os Krahô são a prova viva
de que o cão não é o melhor amigo do homem, mas um dos bichos mais
imbecis que já surgiram na face da Terra.
Por mais que sejam maltratados pelos donos, que os usam para caçar,
os cães não vão embora. Quando levam um chute ou uma pedrada — o que
acontece sempre que se aproximam mais do que meio metro de alguém —,
saem ganindo, mas logo voltam para mendigar os restos de alguma
comida. Neno havia sido atropelado por um caminhão em circunstâncias
um tanto nebulosas e usava uma tala plástica que lhe servia de colete
ortopédico. A filha mais velha do pajé estava internada no hospício de uma
cidade próxima. Tinha enlouquecido. Achei graça de ver o antropólogo e o
filho pintados dos pés à cabeça. Ri deles, mas o meu riso não durou muito.
Parei assim que percebi a expressão de perplexidade com que reagiram. No
fundo, estavam surpresos com a minha ingenuidade. Ficaram com pena de
mim. Não disseram nada. Não queriam me assustar. Aquilo era só o
começo. No dia seguinte seria a minha vez.
As sete da noite, o menino da bicicleta veio me chamar para jantar.
Cada convidado comia na casa em que estava hospedado, o que
significava, para meu desespero, que jantaria separado do antropólogo e do
seu filho. O primeiro jantar na aldeia (um prato de arroz coberto com
pedaços e o caldo do peixe seco que eu tinha visto pendurado no interior da
casa) foi um anúncio. Enquanto estávamos sentados, José Maria, a mulher,
as duas filhas com os netos de colo do casal, o menino da bicicleta e eu,
nos fundos da casa, um tipo de quintal em torno de um fogareiro em que rescaldavam aquela subespécie seca de traíra de fundo de lagoa, Antônia
me dirigiu pela primeira vez a palavra. Me entregou um prato de ágata
cheio de arroz e peixe e perguntou se eu não tinha achado a aldeia feia. Ela
estava infeliz de viver ali, preferia a aldeia anterior, e queria conhecer São
Paulo. Eu mal ouvia, tentava mastigar a carne pestilenta do peixe, na
verdade um emaranhado de espinhas e barbatanas que terminei por engolir,
dizendo que estava uma delícia e pedindo a deus para não vomitar na
frente dos meus anfitriões, que não ficava bem logo no primeiro dia.
Respondi que a aldeia era linda. Desconversei quanto a São Paulo,
perguntei o que ela queria fazer num lugar tão feio e violento. E comi o
máximo que pude, o que não foi muito e logo despertou a inquietação dos
meus anfitriões. Ali começava a via-crúcis da alimentação. Só consegui
engolir o peixe mais uma vez, no café-da-manhã seguinte, já que a mesma
dieta estava presente em todas as refeições. Preocupado, José Maria acabou
procurando o antropólogo, porque eu só comia arroz, e foi instruído a me
servir outras coisas além do peixe seco, legumes, por exemplo, que
segundo o antropólogo eu adorava. No jantar seguinte, me puseram um
prato de batatas-doces na frente. Confesso que por um momento cheguei a
ficar contente e aliviado. Pus-me a descascar a primeira batata (havia cinco
no meu prato) e dei a primeira mordida, sob os olhares ansiosos dos meus
anfitriões. Minha boca se encheu de terra. Só então percebi que as batatas
estavam seccionadas e tinham sido cozidas tal como foram desenterradas,
com a terra que agora se entranhava na massa amolecida do tubérculo,
como um bolo com camadas de chocolate. Eu mastigava as batatas e a terra
e dizia: "Humm! Que delícia!", mas bastou me darem as costas para que
começasse a jogar no mato quase que a totalidade do que havia no prato,
para alegria dos cachorros, que na sua sanha pelos meus restos acabaram
por me denunciar. "Não estava bom?", perguntou Antônia. "Estava ótimo.
Mas é que não estou com fome. Não estou acostumado a comer muito.
Estou precisando emagrecer", respondi, devolvendo-lhe o prato com as
duas batatas que restavam intactas, ainda com casca, e que o José Maria
devorou num instante.Eu tinha levado barras de cereais para uma
eventualidade dessas, as quais escondi no fundo da mochila. Logo quando
cheguei e o José Maria e o filho de bicicleta se juntaram à minha volta para
ver o que eu havia trazido e tirava da mochila, me adiantei e disse que tudo
o que estivesse ali dentro ficaria para eles de presente quando eu fosse
embora. Queria evitar todo tipo de constrangimento. Mas as barras eu
escondi. Só tinha dez. No meio da primeira noite, levantei da rede pé ante
pé, abri a mochila e peguei uma barra. Havia mil barulhos à noite, mas quando rasguei a embalagem, foi como se o silêncio mais absoluto tivesse
baixado sobre a aldeia e só eu, com a crepitação irritante daquela
embalagem, pudesse ser ouvido. Dei a primeira mordida e foi como se o
barulho da minha mastigação fosse uma tro-voada sem fim. Enfiei a barra
inteira na boca e esperei que se dissolvesse, mordendo aqui e ali de vez em
quando. No dia seguinte, ao me reunir aos meus anfitriões para o café-da-
manhã, me perguntaram se eu tinha dormido bem, se não estranhara a rede.
Enquanto me servia o bendito peixe, Antônia disse que havia ficado
preocupada, achando que eu estava com frio quando me levantei no meio
da noite, mas que se acalmou ao ver que eu tinha acordado para comer.
Eu já não tinha escolha. Fui lá dentro, peguei as nove barras de
cereais que me restavam e as trouxe para o café-da-manhã. Eles devoraram
todas em menos de cinco minutos, repetindo "chocolate" enquanto
comiam.
Entre dez da manhã e duas da tarde era impossível ficar do lado de
fora. Quase não havia sombra. Resolvi me instalar na sala, debaixo do
varal de peixes secos, e ler um livro. Mas a minha paz durou pouco.
Primeiro, apareceu o filho mais novo do pajé, o rapaz da tala de plástico
que eu vira na véspera, Neno Mãhi. Agora estava sem a tala. Veio contar a
história do atropelamento. Disse que precisava de um advogado para
processar o motorista do caminhão. Contou que foi atropelado e abandona-
do na estrada, como se tudo tivesse acontecido na véspera. O caminhoneiro
fugiu, mas ele sabia quem era. Eu mal tinha chegado à aldeia. Fiquei
escandalizado com a história, me solidarizei com ele. Neno disse que
nunca mais ia poder trabalhar. Queria indenização. Mais tarde, quando
repeti a história ao antropólogo e ele me falou que não era bem assim,
entendi que, por ser o recém-chegado, eu também era o bobo da aldeia, o
alvo mais fácil das histórias em que ninguém mais acreditava. Fiquei horas
ouvindo aquela lengalenga, sem saber exatamente o que o índio queria
comigo. Como ele não ia embora, chegou uma hora em que decidi voltar a
ler, e depois de uns minutos, diante do meu silêncio e imobilidade, ele se
levantou e saiu. O silêncio não durou mais do que uns minutos mesmo,
porque aí entrou o irmão, Leusipo Pempxà. Entrou na contraluz da porta,
como um vulto. Seu rosto lembrava o dos índios sul-americanos mal-
encarados das aventuras do Tintim. O nariz adunco, a testa avançada sobre
os olhos fundos, as faces encovadas entre os cabelos pretos e lisos que
caíam até os ombros. Era difícil entender o que aquela gente queria.
Leusipo perguntou o que eu tinha ido fazer na aldeia. Preferi achar que o tom era amistoso e, no meu paternalismo ingênuo, comecei a lhe explicar o
que era um romance. Ele não estava interessado. Queria saber o que eu
tinha ido fazer na aldeia. Os velhos estavam preocupados, queriam saber
por que eu vinha remexer no passado, e ele não gostava quando os velhos
ficavam preocupados. Eu tentava convencê-lo de que não havia motivo
para preocupação. Tudo o que eu queria saber já era conhecido. E ele me
perguntava: "Então, por que você quer saber, se já sabe?".
Tentei lhe explicar que pretendia escrever um livro e mais uma vez o
que era um romance, o que era um livro de ficção (e mostrava o que tinha
nas mãos), que seria tudo historinha, sem nenhuma conseqüência na
realidade. Ele seguia incrédulo. Fazia-se de desentendido, mas na verdade
só queria me intimidar. Eu estava entre irritado e amedrontado. Tinha
vontade de mandar o índio à puta que o pariu, mas não podia me indispor
com a aldeia. Se é que havia alguma coisa a descobrir (e Leusipo a me
intimidar punha ainda mais lenha nessa minha fantasia), era preciso ser
diplomático. Ele queria porque queria saber a razão da minha presença na
aldeia. Como na assembléia timbira em Carolina, não dava para concluir se
no fundo ele sabia de alguma coisa ou se não sabia de nada e estava tão
curioso quanto eu. Leusipo não dava o braço a torcer.
Não sorria, não demonstrava nenhum gesto ou expressão de simpatia.
Tinha um olhar impassível e determinado. O motivo da sua visita era me
encurralar. Repetia: "Os velhos estão preocupados". E eu pensava comigo:
"O idiota deve ter ouvido alguma coisa e resolveu tomar a iniciativa de me
pedir satisfação". As minhas explicações sobre o romance eram inúteis. Eu
tentava dizer que, para os brancos que não acreditam em deuses, a ficção
servia de mitologia, era o equivalente dos mitos dos índios, e antes mesmo
de terminar a frase, já não sabia se o idiota era ele ou eu. Ele não dizia
nada a não ser: "O que você quer com o passado?". Repetia. E, diante da
sua insistência bovina, tive de me render à evidência de que eu não sabia
responder à sua pergunta. Não conseguia fazê-lo entender o que era ficção
(no fundo, ele não estava interessado), nem convencê-lo de que o meu
interesse pelo passado não teria conseqüências reais, no final seria tudo
inventado. Fui salvo pela filha mais velha do José Maria, que devia ter por
volta de dezoito anos e apareceu com uma bola besuntada de urucum
nas .mãos, para me pintar. Em outra ocasião, eu teria resistido como um
porco diante da degola. Mas a minha contrariedade diminuiu bastante
graças às circunstâncias. Ainda que a contragosto, concordei em tirar a
camisa. Estava disposto a me submeter a qualquer coisa, até mesmo a ser pintado dos pés à cabeça, se fosse para me livrar do Leusipo. E, de fato,
com a entrada da menina, que o ignorou e lhe deu as costas como se ele
não passasse de um animal, o meu inquisidor imediatamente se levantou do
banco em que tinha sentado ao meu lado (sem ter sido convidado) e se
afastou, contrariado com a interrupção, saindo da casa como um cão
enxotado quando o José Maria entrou para admirar a pintura que a filha me
espalhava pelo corpo com as mãos oleosas e tingidas de vermelho.
Acharam uma graça enorme de me ver todo vermelho. Tudo o que eu
tocava também ficava vermelho: o livro que estava lendo, a bermuda, a
mochila, o chapéu. O toque do urucum. Mas isso não era nada se
comparado à tintura de jenipapo a que seria submetido no dia seguinte.Daí
em diante, tentei evitar o Leusipo e o irmão. Evitava ficar sozinho com
qualquer um dos dois. E, quando saía para tomar banho de manhã cedo,
rezava para que não aparecessem de repente. Nunca mais me amolaram. A
maioria dos índios não falava comigo. Ou me ignoravam ou me
observavam à distância. Podiam estar desconfiados ou simplesmente não
ter nenhum interesse na minha presença.
Quando se aproximavam, era ou para pedir alguma coisa ou porque
estavam bêbados. Só as crianças riam de mim, e as mulheres. As crianças e
as mulheres eram mais vivas. Diziam coisas entre si que eu não entendia e
se divertiam. Me chamavam de branco: "Cupen, cupen". Faziam troça de
mim. Aos poucos, fui descobrindo que, à exceção da minha anfitriã, as
mulheres da aldeia eram muito mais espirituosas, bem-humoradas e
inteligentes do que os homens que as mantinham à margem das decisões.
Elas riam e contavam piadas o tempo inteiro, enquanto os homens as
observavam calados, sem entender ou achar graça, incapazes de contar
uma piada por conta própria, invejosos de tanta vivacidade. Eu nunca sabia
quando estavam bêbados. Na verdade, quase todos ali tinham laços de
sangue. Aos poucos, fui descobrindo que a aldeia Nova era praticamente
uma única família, que eram quase todos irmãos e irmãs, tios e sobrinhos, e
que o parentesco simbólico, classifica-tório, em grande parte apenas
maquiava relações, se não incestuosas, pelo menos muito viciadas. Não
consegui entender nem os laços de sangue nem o parentesco simbólico
entre os membros da tribo.
Era muito complicado, e meus objetivos não eram antropológicos. O
próprio Quain teve dificuldades em entender essas relações. Eu não
compreendia nada. Não sabia qual seria o próximo passo. Via coisas sendo preparadas, mas não fazia idéia do que seriam, nem do papel que a mim
estava reservado naquelas cerimônias, o que só aumentava a expectativa e
o temor. O antropólogo tinha comprado um porco para a festa em
homenagem ao filho. Os índios preparavam um paparuto, uma espécie de
bolo de mandioca recheado com banha e pedaços de porco. A tarde,
enquanto eu observava o trabalho das mulheres, que estendiam folhas de
bananeira pelo chão, sobre um trançado de galhos de árvore, e as cobriam
com uma pasta de mandioca que vinham fazendo desde a véspera, sobre a
qual iam espalhar a carne e a banha do porco, senti uma presença, uma
sombra às minhas costas, uma ligeira vibração do ar, uma respiração no
meu pescoço. Quando me virei, a figura fantasmagórica do velho Vicente
Hintxuatyc, patriarca da aldeia e irmão classificatório de João Canuto,
estava com o rosto quase encostado ao meu, como se me cheirasse, com o
mesmo olhar indecifrável e ameaçador com que o Leusipo tinha me
intimidado pela manhã. Tomei um susto, mas por um controle interior e
uma presença de espírito que em geral não tenho, nada demonstrei além de
revidar com uma expressão inquisidora. Olhei para o velho enrugado, com
os cabelos grisalhos e esfiapados, e perguntei o que ele queria, como se
não estivesse nem aí. Ele continuou me olhando em silêncio e se afastou
sem dizer nada. Vicente era um rapaz no tempo em que Buell Quain viveu
entre os Krahô, mas não chegou a conhecê-lo.
Não estava na aldeia na época. Passou muito tempo entre os brancos,
com idas e vindas, e só na velhice voltou definitivamente para .os Krahô.
Estava na aldeia durante o massacre de 1940 e escapou por pouco. De
alguma forma, todos tentavam me intimidar, nem que fosse apenas para se
divertirem, e aquilo só fazia aumentar o meu medo e a desconfiança sobre
alguma coisa que pudessem estar realmente escondendo de mim.
O paparuto começou a ser assado naquela noite, enquanto o filho do
antropólogo era preparado pelas mulheres, em segredo. No final da tarde,
cortaram-lhe o cabelo à moda krahô, com duas riscas paralelas nos dois
lados da cabeça e uma franjinha na testa.
Pintaram seu corpo de jenipapo, espalharam uma resina pelo tronco,
pelas pernas e pelos braços, e em seguida o cobriram de penas cinzentas e
brancas. Ao mesmo tempo, os homens cavavam um buraco na terra para
lhes servir de forno. Por volta das oito da noite, depois de terem jogado
pedaços de carne e de banha de porco sobre a pasta de mandioca, as índias
fecharam o paparuto com as folhas de bananeira, e os homens o carregaram até o buraco e o cobriram de pedras em brasa e de ter-ra sob os
olhares de toda a tribo, do filho do antropólogo, já paramentado, do pai,
que o fotografava, e de mim. Intuí pela primeira vez com dados mais
objetivos, ao ver o rapaz todo empenado e pintado de preto, que a minha
hora também poderia chegar. A tarde, as mulheres já tinham tentado me
pintar de jenipapo. E eu recusei, alegando que o urucum era suficiente.
Elas apenas riram entre si e disseram coisas que não pude entender. A
despeito da apreensão crescente, a noite foi uma das mais lindas que eu já
vi. A lua cheia clareava a aldeia com um banho de luz prateada. Ninguém
precisava de lanternas ou velas. Havia uma fogueira no centro do pátio, em
torno da qual os homens ficaram conversando até tarde, enquanto um velho
cantor krahô, que fora chamado de outra aldeia especialmente para a festa,
entoava canções e era acompanhado pelas mulheres sob os olhares
malemolentes dos maridos, pais e irmãos sentados no chão. Aos poucos,
conforme a cerimônia avançava noite adentro, os índios foram se retirando
para suas casas, até não sobrar mais ninguém no centro da aldeia além do
cantor. Fui dormir por volta das onze, sabendo que o paparuto seria
desenterrado antes do nascer do sol. Dormi embalado pelo canto do velho
Krahô, que volta e meia retornava ao pátio central e entoava suas canções.
Havia alguma coisa maravilhosa e encantadora naquele ritual. Por volta
das três da manhã, ao ouvir de novo o velho cantor, resolvi me levantar e ir
ver. E deparei com um dos espetáculos mais deslumbrantes da minha vida.
O velho cantava sozinho no centro da aldeia imóvel e adormecida. Depois
de alguns minutos, uma mulher despontava à porta de uma casa e vinha em
silêncio, um vulto ao longe, por um dos caminhos que convergiam para o
pátio. Era uma figura solitária, que se aproximava devagar, enrolada em
panos para se proteger do frio. Ao chegar ao pátio central, ela se postava
diante do cantor e passava a acompanhá-lo na canção, como se fossem uma
dupla. Minutos depois, outra mulher surgia à porta de outra casa e tomava
o caminho solitário que a levava ao centro da aldeia. Uma mulher depois
da outra, de todas as casas, com intervalos de minutos, vinham em direção
ao velho cantor e se punham enfileiradas diante dele, para acompanhá-lo,
atraídas pelas canções. Ele as chamava, uma a uma, até que no centro da
aldeia um coral de mulheres estava formado sob a sua liderança e a lua
cheia. Conforme elas iam chegando e tomando posição no coral, as vozes
cresciam e invadiam as outras casas. Lá pelas tantas, despontou de uma
delas um homem com um carrinho de bebê. E pelo mesmo caminho que
antes havia tomado a sua mulher, ele veio até o centro da aldeia, parou
diante da mãe, já com o peito para fora dos panos, e lhe entregou a criança. Depois voltou para casa com o carrinho vazio. Os Krahô tratam as crianças
com uma deferência especial. E mesmo quando as repreendem, é como se
fosse só de brincadeira.
As cinco da manhã, começaram a desenterrar o paparuto. Eu tinha
voltado para a rede e fui acordado pelo movimento na casa. De todas as
casas, saíam adultos e crianças em direção ao centro da aldeia, onde o
paparuto seria dividido. Cada família teria o seu quinhão e voltaria para
comê-lo em casa. Ainda no centro da aldeia, enquanto distribuíam as fatias
do paparuto, o velho cantor gentilmente me ofereceu um pedaço. A banha
do porco havia derretido durante a noite e se embebido na camada de
mandioca, que agora era uma massa gordurosa sobre a qual estavam
depositados os pedaços de carne de porco. Eu mordi o bolo cintilante, em
que aparecia vez por outra um pelinho de porco, com a banha escorrendo
pelos meus dedos, disse: "Hummm!" e devolvi a fatia.
O cantor riu e perguntou se eu não tinha gostado, insistindo para que
eu comesse mais. Comi o pedaço inteiro, que caiu como uma pedra no
estômago vazio. Foi quando comecei a passar mal. Não comia quase nada
desde que chegara à aldeia, e agora aquele naco de banha de café-da-
manhã. Cada um pegou a sua parte e voltou para a sua casa. O sol já tinha
despontado e começava a ficar quente. No pátio só restaram os cachorros
sarnentos, à procura de uma sobra qualquer, lambendo a banha misturada
com a terra nas folhas de bananeira. Os meus anfitriões se reuniram atrás
da casa para se regalar com o paparuto. Me chamaram, mas eu disse que já
não podia comer mais nada e me deitei na rede. Estava enjoado e bastava
me levantar para tudo começar a girar. O meu estado era agravado pela
apreensão de que, terminada a cerimônia com o filho do antropólogo, eu
seria o próximo. Não tive como resistir quando as índias me cercaram à
tarde para me pintar de jenipapo. A tintura do jenipapo é um líquido
transparente com pedacinhos do fruto, e uma vez aplicada à pele termina
por tingi-la de preto. Quanto mais maduro o jenipapo, mais escuro o
resultado da pintura. Ao contrário do urucum, o jenipapo não mancha a
roupa. O que não me disseram na hora, e que eu devia ter concluído, é que
se não mancha a roupa é porque também não sai da pele. Não adianta
esfregar com nada. O jenipapo fica na pele por um mês. Como a tintura é
transparente, eu não fazia idéia dos desenhos que me pintavam por todo o
corpo. Ao terminarem, me deram uma vareta de bambu no caso de eu
querer me cocar ou espantar os mosquitos até a tintura secar. Sobretudo eu
não devia tocar o corpo com as mãos nas primeiras doze horas, enquanto a tintura ainda estivesse ativa, para não ficar com os dedos pretos. Ao
acordar no dia seguinte, eu estava todo desenhado de preto. Eram traços
largos, geométricos e em ziguezague pelo corpo. Sem que eu tivesse
noção, ceder ao jenipapo tinha sido como fazer um primeiro gesto de
respeito e amizade em relação aos índios.
Ainda não eram oito da manhã quando vieram me chamar. Só ao
chegar ao pátio é que entendi que se tratava de uma reunião para decidir a
minha sorte. Apenas os homens estavam lá. Discutiam coisas na língua
deles. Tentei ficar do lado do antropólogo e do seu filho, em busca de algu-
ma tradução, mas de repente, sem que eu entendesse, formaram-se dois
grupos, como dois times de futebol, e o antropólogo e o filho foram
separados um de cada lado do pátio. A minha sorte se configurava a
despeito de mim. Fiquei sozinho no meio. Foi quando entendi que era eu o
objeto da disputa. De um lado ficava a família do verão ou da estiagem
(Wakmêye), de que fazia parte o antropólogo.
Do outro, a família do inverno ou da estação das chuvas (Katamye),
de que fazia parte o José Maria e o filho do antropólogo. Os dois grupos
alternavam-se no poder e na administração da aldeia, como dois partidos
políticos. O velho cantor se aproximou de mim e disse que agora eu tinha
que escolher em qual clã preferia ficar. Dos dois lados os índios gritavam
coisas que eu não entendia mas que supunha significarem que se eu não
escolhesse o time deles, eles me trucidavam, me esfolavam vivo, me
arrancavam todos os pêlos etc. Eles gritavam e riam. O José Maria gritava
que eu estava na casa dele e que tinha obrigação de ficar do lado dele. Eu
não sabia o que fazer. O antropólogo também gritava que me trouxera para
a aldeia e eu tinha que ficar do lado dele, e foi pelo que eu covardemente
acabei optando. Sempre preferi o verão, não gosto de chuva, eu tentei
explicar ao José Maria, enquanto voltávamos para casa. Mas nada era
suficiente para aplacar a sua decepção. "Daqui para a frente, não falo mais
com você.
Você me traiu. Você escolheu, agora você se vira", ele respondeu. Eu
tentava me convencer de que eu era apenas o objeto de uma grande
brincadeira entre eles, mas isso não ajudava em nada. No meio da tarde, os
dois grupos saíram para o mato em busca de toras para a corrida. Tudo o
que eu queria era não ter que participar de nada. A corrida de toras é um
dos rituais mais tradicionais dos Krahô. É uma corrida de revezamento
com uma tora de buriti, que deve pesar uns cinqüenta quilos, nos ombros. Eu mal conseguia levantá-la do chão. Cada grupo carrega uma tora. Os
índios vêm correndo de fora da aldeia, descalços pelo meio do mato, com
as toras nos ombros. O primeiro grupo a atingir o centro do pátio ganha a
corrida. O meu temor aumentou ainda mais quando depois da corrida, de
que só vi a disputa final, já dentro da aldeia, resolvi tomar um banho no
riacho e fui impedido pelos meus anfitriões: "Não! Você não pode! Hoje,
você vai tomar banho no pátio". Fui correndo procurar o antropólogo para
esclarecer o que me esperava. Mas ele desconversou e disse que eu ia ver,
era uma festa "divertida".
Voltei para casa aterrorizado, e tudo só ficou ainda pior quando o
menino da bicicleta, filho do José Maria, se aproximou furtivamente de
mim e conseguiu dizer apenas: "Eles estão mentindo para você". Teve que
interromper pela metade o que me revelava, para logo sair pedalando e
desaparecer, quando percebeu que o pai se aproximava desconfiado da
cena de cumplicidade do filho comigo. A frase ficou martelando a minha
cabeça. Era o mais próximo de alguma verdade a que eu tinha chegado.
Eu não sabia se dizia respeito ao que preparavam para mim naquela
noite ou ao que escondiam de mim sobre o passado e a morte de Quain.
Em ambos os casos, era péssimo. Agora, eu estava com uma dor de cabeça
terrível. Minha cabeça latejava como se estivesse prestes a explodir. Não
havia meio de eu ficar sozinho com o garoto da bicicleta outra vez, para
que me esclarecesse o que significava aquela frase. Eu estava febril,
deitado na rede, quando no início da noite o José Maria veio me chamar
para o centro da aldeia. Fui a contragosto, tonto e aterrorizado, sem saber
exatamente o que me esperava e o que significava exatamente o tal banho.
Por via das dúvidas, vesti um calção por baixo da bermuda. Já estava bem
frio, e eu não queria ficar com as roupas molhadas. Encontrei os homens
reunidos em torno da fogueira no pátio. A impressão era que todos sabiam
o que ia acontecer, menos eu. O velho Vicente me chamou para sentar ao
seu lado e começou a falar espontaneamente sobre Quain, que ele na
verdade não conhecera. Não disse nada que eu não soubesse. Mas ao
menos já não parecia desconfiado. O que me dizia não me interessava
mais. Eu mal o escutava, estava trêmulo e fraco, não sei se de fome ou de
medo. Finalmente, apareceu o antropólogo, e eu, que não devia estar com a
aparência lá muito boa, lhe implorei para que me revelasse de uma vez por
todas o que ia acontecer ali. "Você escolheu, hoje de manhã. Agora vai ser
apresentado à sua família, às mulheres com quem não poderá transar", ele
disse. Eu não queria ser apresentado a ninguém. Estava quase desmaiando quando apareceram as mulheres, com baldes e garrafas cheios de água.
Formou-se um círculo de homens que dançavam de mãos dadas em volta
da fogueira e cantavam, comandados pelo velho cantor. Eu estava tentando
me proteger ao lado do antropólogo. De repente, o velho cantor me puxou
para a roda de homens. Relutei, disse que estava com febre, não podia
tomar um banho com aquele frio. Ele riu, disse que o banho curava a febre.
Eu não tinha mais como resistir. Só pedi que antes me deixassem tirar a
bermuda, a camisa e as sandálias. Bastou eu entrar de calção na roda para
as mulheres se aproximarem por fora, com seus baldes e garrafas, cercando
o círculo dos homens. Nós dançávamos em torno da fogueira de mãos
dadas. Os índios cantavam. Eu esperava pelo pior. De repente, a roda parou
e a cantoria também. Algumas mulheres com baldes e garrafas de água nas
mãos se aproximaram, escolheram alguns homens e os levaram para o
centro da roda, perto do fogo, onde eles abaixaram a cabeça, como numa
reverência, e elas lhes despejaram os baldes e as garrafas, rindo a valer. Foi
quando eu entendi o ritual, embora continuasse sem compreender a sua
razão. As mulheres jogavam água nos homens a que estavam ligadas por
laços de parentesco simbólico, classificatório, com os quais não podiam
manter relações sexuais. O banho era uma cerimônia de explicitação e de-
limitação da interdição do incesto. A primeira leva de homens banhados
voltou para a roda, as mulheres se juntaram às outras do lado de fora do
círculo, e nós retomamos a dança e a cantoria. Quando veio a nova parada,
uma das mulheres me puxou para perto do fogo, enquanto outras puxavam
outros homens, e despejou um balde de água na minha cabeça.
A febre passou, a cabeça parou de doer. Se era só isso, ótimo. A
proximidade do fogo diminuía o frio e ajudava a secar. Tomei mais dois
banhos e a roda se desfez. Estava aliviado, achei que tudo acabava ali, e já
estava pronto para voltar para casa, quando o cantor me puxou de volta
para o fogo. Uma nova cerimônia ia começar. O pavor voltou, e a fantasia
de que em algum momento, quando eu estivesse mais distraído, quando
menos esperasse, todos pulariam em cima de mim. Havia uma nova
configuração em torno do fogo. Os homens formavam fileiras que
começavam no centro, na fogueira, e se estendiam para fora. Já não
estavam de frente para o fogo, mas de lado. Avançavam em movimentos
circulares, só que agora uma fileira atrás da outra, ora no sentido horário,
ora no sentido anti-horário. Formavam com a fogueira um desenho solar
em que eles eram os raios. Cantavam canções comandados pelo velho
cantor e morriam de rir. Eu, no meio daquilo tudo, perguntava aos índios ao meu lado o que queria dizer aquele ritual. "Você não sabe?",
respondiam, e caíam na gargalhada. Só mais tarde me explicaram que cada
canção contava a história de um bicho da natureza e que todas tinham
fortes conotações sexuais. A cada nova canção, o movimento em torno da
fogueira mudava de sentido. Nada aconteceu comigo naquela noite, mas
prevendo a iminência do batizado que me preparavam (afinal, para que
teriam me apresentado às mulheres da minha "família" se não fosse para
me dar um nome em seguida?), procurei o antropólogo e deixei bem claro
que não estava disposto a ser coberto de penas ou a ter o cabelo cortado à
moda krahô e que lutaria até o final para me defender. Ele deve ter ficado
surpreso com a minha reação e a falta de espírito esportivo. Só depois de
ver o que aconteceria com ele no dia seguinte é que me dei conta de que
talvez tivesse se entregado em sacrifício no meu lugar.
A terceira noite foi um inferno. Fazia um frio do cão e eu não
arrumava posição na rede. Qualquer movimento me descobria. Quando o
dia raiou, comecei a ouvir um grupo de homens cantando. Eles se
aproximavam da casa. Gelei. Aproximavam-se e se afastavam e depois
voltavam mais uma vez. Eu tinha certeza de que estavam atrás de mim.
Vinham me pegar. Me fiz de morto. Deixei todos se levantarem e continuei
na rede, fingindo que dormia. Quando por fim resolvi me levantar, a
cerimônia já estava avançada. Tinham pegado o antropólogo. Ele estava
coberto de penas, e os índios o carregavam nos ombros até o riacho para
um batismo matinal. Era estranho que o estivessem batizando, já que ele
fora batizado anos antes. Demorei a entender que ele provavelmente
assumira o lugar que reservaram a mim, só para não decepcioná-los. Ele os
convencera a não me batizar, temeroso de qual seria a minha reação.
Quando o trouxeram de volta do riacho, ele foi cercado por homens e
mulheres no centro da aldeia.
Foi quando as índias começaram a fazer troça da minha covardia. A
mais debochada, Gersila Kryjkwyi, estava inconformada com a minha
desfeita. Eu respondia que não me sentia à vontade para ser batizado, só
estava na aldeia havia três dias, mas jurei que da próxima vez as deixaria
fazer o que bem entendessem comigo. Gersila gritava que sabia muito bem
que não haveria próxima vez, eu era um frouxo. Creuza Prumkwyi
sentenciou que então ela ia esperar, porque da próxima vez que eu pisasse
na aldeia ia me batizar como manda o figurino, ia me arrancar cada um dos
cílios, além das sobrancelhas, ia tirar sangue de mim. Todas morriam de
rir. Modéstia à parte, acho que nunca se divertiram tanto às custas de um branco. Antes de irmos embora, a mulher do velho Vicente, a matriarca da
aldeia, Francelina Wrãmkwyi, a mãe de todas, uma mulher corcunda, ao
mesmo tempo frágil e forte, curvada para a frente, a quem só restava
esperar a morte e que me lembrou a minha avó de cento e sete anos, se
aproximou para dizer que no começo tinha ficado desconfiada, mas que
acabou simpatizando comigo, sabia que eu não ia esquecer os índios. Se
para mim, com todo o terror, foi difícil não me afeiçoar a eles em apenas
três dias, fico pensando no que deve ter sentido Quain ao longo de quase
cinco meses sozinho entre os Krahô. No caminho de volta, no interior da
cabine da caminhonete, o antropólogo tentou dissipar a minha descon-
fiança quando lhe falei do menino da bicicleta e do que me dissera
furtivamente na segunda tarde, antes de ser surpreendido em flagrante
delito pelo pai. O antropólogo me garantiu que eles lhe teriam dito se
houvesse alguma coisa secreta a ser revelada sobre o etnólogo americano,
mas ele não podia imaginar o tamanho reservado para esse segredo na
minha cabeça. Na verdade, nem eu podia imaginar.
Nas cartas que escreveu para Margaret Mead no início de julho e que
foram encontradas em meio ao espólio levado pelos índios para Carolina
depois de sua morte, Quain reclama da dificuldade de trabalhar com os
Krahô: "É muito difícil treinar nativos por aqui. A única forma de me
impor a eles é ficando bravo, e então, por vinte e quatro horas, tenho todos
os duzentos e dez deles aos meus pés, tentando desajeitadamente me sa-
tisfazer. Eles ignoram a idéia de se esforçar para ganhar ou receber alguma
coisa, já que de hábito podem ganhar muito mais quando ficam
emburrados. Venho trabalhando no último mês com um jovem (que é
definitivamente um anormal, já que parece gostar de trabalhar comigo)
sobre a língua. Hoje ele me comunicou que não pode mais trabalhar, pois
está cheio de ser ridicularizado pelo resto da aldeia. Nem mesmo as
crianças o respeitam". O velho Diniz não sabia quem poderia ter sido esse
informante.
Lembrava do menino Zacarias, que cantava para Quain, mas não
desse homem desprezado pela aldeia quando começou a trabalhar com o
etnólogo.
Assim como os índios o adotam quando o recebem na aldeia, eles
esperam que você também os adote quando vão à cidade. E uma relação
aparentemente recíproca, mas no fundo estranha e muitas vezes
desagradável. Não é uma relação de igual para igual, mas de adoção mutua, o que faz toda a diferença: na aldeia, você é a criança deles; na
cidade, eles são a sua criança. Nunca vi ninguém tratar as crianças com
tanto carinho e liberdade. De volta a São Paulo, depois da minha passagem
pela aldeia, comecei a receber telefonemas a cobrar. Os índios me ligavam
sempre que passavam por Carolina.
Pediam coisas. Em geral, dinheiro. Não faziam a menor cerimônia.
Como se agora fossem meus filhos. Os pedidos não tinham fim. Agora eu
era o eterno devedor. De criança eu tinha passado a pai relapso a quem
finalmente é dada a chance de reparar seus erros passados e sua ausência. É
difícil entender a relação. São os órfãos da civilização. Estão abandonados.
Precisam de alianças no mundo dos brancos, um mundo que eles tentam
entender com esforço e em geral em vão. O problema é que a relação de
adoção mutua já nasce desequilibrada, uma vez que a freqüência com que
os Krahô vêm aos brancos é muito maior do que a freqüência com que os
brancos vão aos Krahô. Uma vez que o mundo é dos brancos. Há neles
uma carência irreparável. Não querem ser esquecidos. Agarram-se como
podem a todos os que passam pela aldeia, como se os visitantes fossem os
pais há muito desaparecidos. Querem que você faça parte da família.
Precisam que você seja pai, mãe e irmão. Numa das cartas a dona Heloísa
depois da morte do filho, Fannie Quain dizia que os Krahô o chamavam de
"grande irmão" — o que é desmentido em outros documentos — e que
pediam às autoridades que lhes enviassem um substituto à altura com a
maior urgência, alguém com uma alma tão boa quanto a dele. Essa relação
paternalista é das mais incômodas e irritantes, e o próprio Quain sofreu
esse constrangimento. Há quem tire de letra. Não foi o meu caso. Não sou
antropólogo e não tenho uma boa alma. Fiquei cheio. A partir de um dado
momento, decidi que não responderia mais aos recados que me deixavam,
pedindo que eu ligasse sem falta na noite seguinte. A culpa provocada por
essa decisão também me irritou, mas menos do que me ameaçava a idéia
de que de uma hora para outra pudessem bater à minha porta. Antes de sair
da aldeia, diante da minha recusa em ser batizado, Gersila se aproximou de
mim, entre ofendida e irônica, e me jogou na cara que eu era como todos
os brancos, que os abandonaria, nunca mais voltaria à aldeia, nunca mais
pensaria neles. Jurei que não. Estava apavorado com o que pudessem fazer
comigo (nada além de me cobrir de penas e me dar um nome e uma família
da qual nunca mais poderia me desvencilhar). O meu medo era visível. Fiz
um papel pífio. E eles riram da minha covardia. Jurei que não me
esqueceria deles. E os abandonei, como todos os brancos.
Segundo o relato do velho Diniz, corroborado pela carta que Buell
Quain escreveu a Ruth Benedict em 15 de setembro de 1938, o jovem
etnólogo também não queria participar ou se envolver nesse tipo de relação
("Não gosto da idéia de me tornar nativo. As concessões que fazia nesse
sentido, em Fiji, aqui não só são aceitas como são esperadas"), não queria
outra família. Já tinha uma. Ao que parece, tinha razões de sobra para evi-
tar os laços de parentesco. A julgar por algumas de suas últimas cartas, eles
foram a razão da sua morte.
Por um momento, depois da entrevista com o velho Diniz, cheguei a
suspeitar da forma incisiva pela qual os índios insistiam que o americano
não sofrerá de doença nenhuma. Como podiam saber? Tanto os que na
época fizeram o relato da morte a Manoel Perna como agora o velho Diniz,
que àquela altura era apenas uma criança, foram enfáticos em rechaçar toda
e qualquer dúvida sobre uma eventual doença contagiosa, como se nesse
caso eles estivessem diretamente implicados na morte do etnólogo. Nas
notas que deixou sobre os Krahô, Quain se refere a "doenças introduzidas":
"O estado de saúde na aldeia requer atenção urgente do governo. Além de
gripes comuns, as doenças sérias são tuberculose, lepra e provavelmente
sífilis. A minha incerteza quanto à sífilis se deve à ausência de manifesta-
ções avançadas da doença, tais como mal de Parkinson, ataxia ou paresia.
A maioria dos sintomas que observei pode ser causada por tuberculose".
Na sua obsessão, não é impossível que já visse a si mesmo por toda parte.

12. Você quer saber o que o dr. Buellfez na aldeia. Ê provável que
nada. Ese houvesse alguma coisa, não seria dos índios que você iria ar-
rancar uma resposta. Também não sei de nada. Mas posso imaginar, e você
também pode imaginar, como imaginei a cada vez que ele me contou as
suas histórias, pela intensidade da sua solidão, que na noite do suicídio ele
estivesse fugindo.
Quando voltou a Carolina, mais de dois meses depois de ter partido
com os índios e mais de dois meses antes de se matar, achava-se num
estado deplorável. Preferia se esconder. Disse que não confiava em
ninguém. Mas não podia desconfiar de mim, tanto que me procurou. Devia
se lembrar da primeira noite em que veio à minha casa, logo que chegou à
cidade, quando me falou dos Trumai. Chegou sujo e sem sapatos. Estava
envergonhado, intimidado pelos brancos que antes havia desprezado e aos quais já não ousava se dirigir em português, com medo de não conseguir se
expressar. Eu só o ouvia.
Tanto que veio á minha casa. Com os outros, preferia ficar calado.
Quando me procurava, era para falar. As vezes, quando bebia, não dizia
coisa com coisa. Achava que estivessem atrás dele, que aonde fosse eles o
encontrariam. Não via saídas. Eu perguntava, mas ele não me dizia quem
eram eles. Me contou que tinha vivido sob vigilância no Rio de Janeiro.
Queria dizer que era vigiado onde quer que estivesse.
Sabiam de tudo o que fazia, por mais que se escondesse, por mais
que agisse em segredo, por mais que não contasse nada a ninguém. E então
se calava, bebia mais um trago e de repente retomava o que interrompera.
Achava que existia uma rede de informações no Brasil. Não era só a
policia no Rio ou os inspetores do SP1 na selva que o assombravam. Dizia
que todos os seus passos eram observados desde que havia pisado no
Brasil. Nunca vi ninguém tão só. Durante a sua estada em Carolina, vinha à
minha casa no final da tarde e conversávamos noite adentro. Muitas vezes
não entendi o que dizia, mas ainda assim compreendia o que estava
querendo dizer. Eu imaginava. Ele só precisava conversar com alguém.
Numa das vezes em que me falou de suas viagens pelo mundo, perguntei
aonde queria chegar e ele me disse que estava em busca de um ponto de
vista. Eu lhe perguntei: "Para olhar o quê?". Ele respondeu: "Um ponto de
vista em que eu já não esteja no campo de visão". Eu poderia ter dito a ele,
mas não tive coragem, que não precisava procurar, que se fosse por isso
não precisava ter ido tão longe. Porque ele nunca estaria no seu próprio
campo de visão, onde quer que estivesse, ninguém nunca está no seu
próprio campo de visão, desde que evite os espelhos. As vezes me dava a
impressão de que, a despeito de ter visto muitas coisas, não via o óbvio, e
por isso acreditava que os outros também não o vissem, que pudesse se
esconder. O que eu vi, nunca falei. Fiquei à sua espera. O que eu ouvi, já
não sei se foi fato ou fruto de um conjunto de imaginações, minha e dele, a
começar pelas visões de que me falava.
Também temia que a morte fosse, ao contrário, a descoberta do que
até então não tinha conseguido ver, embora não tivesse poupado esforços
para tanto, e que essa descoberta fosse ainda pior do que tudo o que o
pudesse levar à morte. O certo é que, ao deixar a aldeia pela última vez, ele
estava fugindo. E isso eu já lhe disse, mas repito, porque quero que guarde
bem. Quando muito, haverá um lugar para uma única causa e uma única imagem na sua cabeça. Terá que aprender a se lembrar dele como um
homem fora do seu campo de visão, se é que pretende vê-lo como eu o vi.
Também demorei a entender o que ele queria dizer com aquilo, o que havia
de mais terrível nas suas palavras: que, ao contrário dos outros, vivia fora
de si. Via-se como um estrangeiro e, ao viajar, procurava apenas voltar
para dentro de si, de onde não estaria mais condenado a se ver. Sua fuga
foi resultado do seu fracasso. De certo modo, ele se matou para sumir do
seu campo de visão, para deixar de se ver.

13. A saída de Buell Quain da
aldeia pela última vez lembra uma fuga. Sua caminhada pela mata
acompanhado de dois rapazes que havia contratado para guiá-lo até
Carolina se parece com uma luta contra o tempo ou contra alguma coisa no
seu encalço. Se estava realmente louco, e a despeito do clichê psicológico,
era então uma fuga de si mesmo, do duplo que o mataria na eventualidade
de uma nova crise, que se aproximava. Deve ter sentido a iminência de
uma nova crise e decidido ir embora antes que fosse tarde demais. Na
solidão, vivia acompanhado dos seus fantasmas, via a si mesmo como a um
outro de quem tentava se livrar. Arrastava alguém no seu rastro. Carregava
um fardo: Cãmtwyon. "Toda morte é assassínio", ele escreveu a Ruth
Benedict, sobre os Tramai. "Não é raro haver ataques imaginários. Os
homens se juntam aterrorizados no centro da aldeia — o lugar mais
exposto de todos — e esperam ser alvejados por flechas que virão da mata
escura." A aceitar a explicação da doença, no entanto, de um ponto de vista
exterior e mais objetivo, esse fardo era agora o próprio corpo leproso ou
sifilítico. Simplesmente não podia mais suportar o sofrimento do próprio
corpo castigado pela doença. Em carta de 2 de setembro de 1939, Fannie
Dunn Quain escreve a dona Heloísa em busca de uma explicação para o
suicídio do filho: "Acho que ele estava doente quando voltou à aldeia em
junho, pois disse que ia tentar 'agüentar até dezembro'. O mais doloroso
nisso tudo é que tenha chegado a cerca de quarenta milhas do avião que o
teria levado ao Rio de Janeiro, onde há recursos médicos que poderiam tê-
lo salvado. Acho que tentou por quatro dias, na ânsia de voltar para casa
sob o forte calor, mas acabou perdendo a luta — fico de coração partido".
Houve momentos em que, talvez por causa da inutilidade da
obsessão de entender o que o guiava nas suas últimas horas, e com isso
tentando entrar também na sua loucura, cheguei a cogitar que pudesse estar
fugindo não só de um fantasma pessoal, mas de alguma coisa objetiva e
concreta, de alguém de carne e osso. Quando nos encontramos, perguntei à
antropóloga que tinha escrito o artigo no jornal se ela aventava a possibilidade de ele ter sido assassinado. E ela foi taxativa. Me disse que
não havia nenhuma chance de que ele não tivesse se matado. Tudo
contradizia a hipótese do homicídio, a começar pelas cartas que deixou. E
eu sabia. Tanto que não insisti. Talvez Quain tivesse as suas razões para
não deixar transparecer que estava correndo perigo de vida. O que eu
queria dizer não fazia muito sentido, estava contaminado pela loucura dele.
O que eu queria dizer era que talvez ele tivesse sido compelido ao suicídio,
talvez tivesse se matado, em pânico, ao entender que não conseguiria
escapar não só da culpa, mas de uma ameaça real, antes que fosse assas-
sinado. Talvez houvesse razões para ele ser assassinado. Talvez não
quisesse que essas razões viessem à tona. "Os índios estão a salvo, pelo
que fico muito feliz." Talvez preferisse se matar. Tudo dependia do que
tivesse feito na aldeia. Para mim, a resposta só podia estar numa das cartas
que escreveu antes de morrer, as quais desapareceram com os seus
destinatários. Ainda assim, me parecia pouco provável que, se houvesse
uma explicação numa das cartas que o etnólogo deixou ao pai, ao cunhado
ou ao missionário Thomas Young, ela pudesse não ter vindo a público. Foi
quando comecei a acalentar a suposição de que devia haver (ou ter havido)
uma oitava carta.
Cada um lê os poemas como pode e neles entende o que quer, aplica
o sentido dos versos à sua própria experiência acumulada até o momento
em que os lê. Num fim de semana na praia, durante uma noite de insônia,
semanas depois de começar a investigar a morte de Quain, e o mistério que
a meu ver tinha ficado adormecido por sessenta e dois anos, abri ao acaso
uma antologia do Drummond na página da "Elegia 1938":
"Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,/ onde as formas e as
ações não encerram nenhum exemplo./ Praticas laboriosamente os gestos
universais,/ sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual./ [...]
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota/ e adiar para outro
século a felicidade coletiva./ Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a
injusta distribuição/ porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de
Manhattan".

14. Isto é para quando você vier. Ele voltou a Carolina sem
sapatos. Queria passar o aniversário na cidade. Naquela noite, me falou
de outra ilha. Me disse que eu não podia imaginar. Eu já não tinha ima-
ginado antes, quando me falara da ilha onde havia passado dez meses
entre os nativos do Pacífico, já fazia quatro anos, do outro lado do mundo.
Agora, já não falava da mesma. Não era a ilha em que adormecera sob as
estrelas, embalado pelas histórias que um nativo lhe contava do crepúsculo à aurora, ao longo de semanas ininterruptas. Me lembro de vê-
lo rindo pela primeira vez da própria história, quando chegou a Carolina,
quando me falou da ilha no Pacífico, ainda na primeira noite em que
bebemos juntos, fazia mais de dois meses, comentando as cutucadas que o
nativo lhe dava, em vão, para mantê-lo acordado, e de como fiquei sem,
graça quando ele de repente parou de rir para assumir uma expressão
grave e prosseguir o relato, dizendo que o nativo, diante da inutilidade
das tentativas de mantê-lo desperto, terminava por se deitar ao seu lado
também. Fiquei constrangido com a idéia de que pudesse pensar que eu
estava cansado de suas histórias e de que, sem, perceber, ele insinuasse
alguma coisa ao me contar aquela. Quando o etnólogo acordava na sua
ilha do Pacífico, o sol já estava alto e o contador de histórias tinha ido
embora. Quando voltou a Carolina no final de maio, me mostrou
orgulhoso a foto e o desenho que fizera de próprio punho, retratos de
negros enormes e fortes, para que eu pudesse ter uma idéia do que me
dizia. Eu não podia ter imaginado que a aldeia não ficava na praia, mas
morro acima, até ele me falar da Floresta Interior, governada por um
chefe que mantinha um dente de baleia pendurado no peito como símbolo
de poder. Na ilha, os chefes eram sagrados, assim como tudo em que eles
tocavam e todos os que os tocavam. As aldeias na costa foram aculturadas
pelos invasores de outras ilhas, que por sua vez foram influenciados pelos
europeus. Só os nativos do interior mantinham intacto aquilo que ele
procurava: uma sociedade em que, a despeito da rigidez das leis, os
próprios indivíduos decidiam os seus papéis dentro de uma estrutura fixa e
de um repertório predeterminado. Havia um leque de opções, embora
restrito, e uma mobilidade interna. Foi o que ele me disse. Sempre teve
fascínio pelas ilhas. São universos isolados. Arrumou o primeiro emprego
com apenas quinze anos efoi trabalhar, durante as férias de 1928, como
u
con-trolador do tempo e das horas" —foi nesses termos canhestros que
ele tentou me explicar, com o auxílio de gestos, a sua tarefa no canteiro de
obras de uma estrada de ferro numa região inexplorada no coração do
Canadá, com a poesia involuntária dos que não conhecem a língua em que
tentam se exprimir. Aproveitava os dias de folga para explorar as ilhas da
região, rascunhando mapas que mandava para casa no lugar de cartas e
que mostravam a sua posição no mundo. Avançava por rochedos e
florestas de abetos, horas a fio a desbravar regiões desérticas em sua
fantasia de pioneiro solitário, a embrenhar-se na natureza até não restar
outra fronteira para a sua liberdade além dos limites do próprio corpo,
até nada além do corpo impedir a fusão com a paisagem em que já se dissolvera em espírito. Eram territórios que trilhava sozinho no verão
ártico, infestado de mosquitos, e cujos mapas eram uma indissociável
combinação da sua experiência e da sua imaginação. Assim como o que
tento lhe reproduzir agora, e você terá que perdoar a precariedade das
imagens de um humilde sertanejo que não conhece o mundo e nunca viu a
neve e já não pode dissociar a sua própria imaginação do que ouviu. Mas
não foi de nenhuma dessas ilhas que ele me falou quando voltou a
Carolina descalço e humilhado no final de maio. Foi de uma outra, à qual
se chegava de balsa, depois de duas horas de trem, vindo da cidade. Uma
ilha que conheceu adulto. Falou de uma casa com vários quartos, todos
ocupados por amigos. Já não se expressava com tristeza nem com alegria.
E eu não saberia dizer que sentimentos guardava daquela lembrança.
Contou de uma tarde em que, voltando de uma caminhada solitária na
praia, onde abandonara os colegas, deparou com a casa
excepcionalmente vazia e um homem sentado na cozinha. E que, antes de
poder se apresentar, o estranho, saindo da sombra, sacou de uma
máquina fotográfica e registrou para sempre o espanto e o desconforto do
antropólogo recém-chegado de um passeio na praia, surpreendido pelo
desconhecido. Numa das noites em que veio à minha casa durante a sua
passagem por Carolina, no final de maio, o dr. Buell confessou que viera
ao Brasil com a missão de contrariar a imagem revelada naquele retrato.
Como um desafio e uma aposta que fizera consigo mesmo. Havia sido
traído pelo intruso e sua câmera. Não podia admitir que aquela fosse a
sua imagem mais verdadeira: a expressão de espanto diante do
desconhecido. Havia sido pego de surpresa pelo fotógrafo, antes de poder
dizer qualquer coisa. E embora depois tenham se tornado amigos, por
muito tempo o estranho não conseguiria tirar outra foto dele. Até irromper
um dia em seu apartamento, sem avisar, decidido a fotografá-lo de
qualquer jeito, depois de ter sabido que ele estava de partida para o
Brasil. Queria uma lembrança do amigo antes de embarcar para a selva
da América do Sul. Eu só sei que esse estranho era você.

15. Em outubro de 1939, aos sessenta e cinco anos, Fannie Quain
mandou três fotos do filho para Heloísa Alberto Torres. A maior delas
tinha sido feita num estúdio de Minneapolis, em 1935, antes de ele ir para
Fiji. Os outros dois retratos, um de perfil e o outro de frente, foram tirados
em 1937, quando Buell Quain estava trabalhando no seu apartamento, em
Nova York, provavelmente nos últimos retoques dos dois livros sobre Fiji que seriam publicados após a morte dele, graças aos esforços de sua mãe e
de Ruth Benedict. "Um amigo, um artista de Nova York que tinha como
hobby esse tipo de coisas, fez Buell prometer que um dia o deixaria
fotografá-lo. O amigo se cansou de esperar e foi ao apartamento de Buell
sem lhe dar a chance de se barbear ou trocar de roupa", esclarecia a mãe,
sempre tão zelosa da imagem do filho. Foram esses os retratos que o
etnólogo trouxe para o Brasil e aqui deixou como lembrança, nas mãos de
quem o conheceu.
Em dezembro de 1939, por ocasião do primeiro Natal depois da
morte de Quain, Heloísa Alberto Torres responde à mãe do etnólogo,
agradecendo as fotos: "A maior delas de início me causou uma certa
surpresa, não sabia que ele tinha cabelos tão bonitos, já que os cortara tão
curtos ao vir para o Brasil. Mas a expressão, embora triste, é excelente, a
mesma que mantinha em suas reflexões". Era como se um diálogo forjado
de auto-enganos estivesse sendo tácita e mutuamente incentivado entre as
duas. Alguma coisa me dava a impressão de que ambas sabiam e fingiam
não saber. Na mesma carta em que agradece as fotos, no entanto, talvez
para acalmar a ansiedade da mãe, dona Heloísa diz coi-sas que, no mínimo,
contradizem uma carta estranhíssima que tinha enviado ao próprio Quain
poucos meses antes do suicídio.
Dona Heloísa escreve à mãe do etnólogo: "Ele parecia tão bem-
disposto e feliz quando deixou o Rio", e completa dizendo que nem os
colegas de Columbia podiam imaginar tal desfecho.
Vários outros elementos desmentem a afirmação. Por exemplo: numa
carta de 12 de março de 1939, Ruth Landes escreve a Ruth Benedict:
"Buell partiu há cerca de uma semana para o Norte. Parecia saudável, mas
no final começou a se comportar de uma maneira muito nervosa". Quando,
cinco meses depois, Quain se mata, Benedict, preocupada com o efeito que
a notícia poderia causar sobre Charles Wagley, isolado entre os Tapirapé,
em Mato Grosso, pede ao "bom amigo" dele, Carl Withers, que lhe escreva
uma carta de apoio. Withers escreve de volta a Benedict: "Fiquei muito
tocado com a sua preocupação de impedir que Chuck sofresse um abalo
demasiado grande com a notícia da morte do pobre Buell. Cá entre nós, a
julgar pelas cartas que havia me mandado do Rio, creio que ele não deve
ter ficado muito surpreso".
Mas o mais perturbador e contraditório em relação à imagem serena
que dona Heloísa pretende passar à mãe de Quain sobre os últimos dias do filho no Rio de Janeiro, nem que seja apenas para acalmá-la, surge numa
carta enigmática que ela própria escreveu ao etnólogo, em inglês, em 7 de
maio de 1939, enquanto ele estava entre os Krahô, a pretexto de lhe propor
um futuro emprego de professor no Museu Nacional:
"Eu me pergunto o que o levou a rasgar a última parte da sua carta.
Antes que apareça a oportunidade de se pensar em você ficar no Brasil,
gostaria que tivéssemos uma conversa séria. Temo já não poder esperar e
lhe peço que me permita falar à coeur ouvert. Estou certa de que você não
ficará magoado com nada do que vou escrever.
Preciso ter total confiança em você e fico ressentida ao pensar em
certas coisas que sei que você andava fazendo no Rio. Muitas vezes quis
ter falado com você sobre isso. Talvez tivesse podido ajudá-lo. Estou certa
de que sabe o que quero dizer. Além do mais, você não deve esquecer
que,se algo desagradável ocorrer na aldeia ou mesmo nas cidades ci-
vilizadas, isso será do conhecimento do Serviço [de Proteção aos índios], e
eu receberei queixas a respeito dos meus amigos. Pode estar certo de que
serei a primeira a sofrer as conseqüências de qualquer coisa errada. Buell,
sei que você não vai levar pinga para a aldeia. Sei que não vai beber
demais quando estiver em Carolina. Sei que não vai tocar em nenhuma
índia. Escreva e me diga que posso confiar em você. Tenho de confessar
que às vezes você me dá medo; acho-o muito instável, e temo pelo seu fu-
turo.
Gostaria de que você tivesse confiado mais em mim e me falado
sobre o que andava fazendo. Espero que a sua estada no Brasil lhe faça
muito bem, e acredito que quanto mais tempo ficar, melhor. Ficarei muito
feliz em ajudá-lo e quero que esteja certo de que esta sua velha amiga é
bem mais compreensiva com as misérias humanas do que pode parecer.
Me pergunto se você vai compreender exatamente o que quero dizer, mas
espero que a sua inteligência e a sua sensibilidade suplementem a minha
pobreza de expressão na sua língua."
Por um tempo, quebrei a cabeça para compreender o que ela
realmente estava dizendo naquela carta, o que queria dizer com "misérias
humanas". Falava, em código, de uma coisa que só o próprio Quain podia
saber.
Em 27 de maio, durante a sua visita a Carolina, depois de tomar
conhecimento dessa carta, Quain aproveitou para responder a dona Heloísa: "A senhora tem razão quando me pede que tome cuidado com a
minha reputação. Pois esteja certa de que levo uma vida sexual impecável
e que a bebida está restrita a um drinque ou outro, em encontros
ocasionais. Não posso trabalhar e beber ao mesmo tempo".
Em 4 de julho, menos de um mês antes de se matar, ele escreveu a
Margaret Mead uma carta abruptamente interrompida, que não foi enviada:
"Duvido de que em algum outro lugar no mundo existam culturas
indígenas tão puras. Mas, a despeito de todas as virtudes do Xingu,
gostaria de deixar o Brasil definitivamente e limitar meu trabalho a
regiões...".Na mesma carta, encontrada entre seus pertences levados pelos
Krahô para Carolina, Quain reclamava das dificuldades de trabalhar com
os índios no Brasil:
"Acredito que isso possa ser atribuído à natureza indisciplinada e
invertebrada da própria cultura brasileira. Meus índios estão habituados a
lidar com o tipo degenerado de brasileiro rural que se estabeleceu nesta vi-
zinhança — é terra marginal e a escória do Brasil vive dela. Tanto os
brasileiros como os índios que tenho visto são crianças mimadas que
berram se não obtêm o que desejam e nunca mantêm as suas promessas,
uma vez que você lhes dá as costas. O clima é anárquico e nada agradável.
A sociedade parece ter se esgarçado. Minha dificuldade aqui pode ser
atribuída em grande parte à influência brasileira. O Brasil, por sua vez, sem
dúvida absorveu muitas das marcas mais desagradáveis das culturas
indígenas com as quais teve contato inicialmente. Um engenheiro de Ca-
rolina entra na água para se banhar do mesmo jeito peculiar dos Krahô, e
também dos índios do Xingu. Ninguém no Rio de Janeiro obedece aos
avisos de proibição de fumar, porque 'no Brasil não prestamos atenção a
esse tipo de regulamento'.
As crianças brasileiras pedem a todos os viajantes uma 'bênção'. Isso
pode não ter origem indígena, mas está totalmente adequado ao
temperamento dos índios. Os brasileiros se contentam em fazer seus
pedidos à sorte". Quain, ao contrário, nunca pretendeu deixar ao destino a
sua chance. Nem na hora da morte.
Isto foi o que ele viu. Chegou ao Rio de Janeiro às vésperas do
Carnaval de 1938 e se hospedou numa pensão da rua do Riachuelo, na
Lapa. O bairro era conhecido por suas "pensões do amor barato", como as
definiu Luís Martins, àquela altura célebre cronista do bas-fond e da
prostituição carioca. Ao pé da carta de apresentação que trazia, assinada por Franz Boas, o jovem etnólogo escreveu à mão o seu novo endereço no
Rio: "B. H. Quain, 107 Rua Riachuelo (Pensão Gustavo)". Na mesma épo-
ca, Banana da terra, filme em que Carmen Miranda foi imortalizada com
bananas na cabeça enquanto cantava "O que é que a baiana tem?", entrou
em cartaz no cine Metro-Passeio, no centro da cidade. O filme inspirou os
foliões, que saíram às ruas da Lapa, em blocos, travestidos de baianas, com
a cabeça coberta de frutas. Ainda no Carnaval de 1938, um dos principais
personagens da mitologia local, expoente da malandragem, do crime e da
homossexualidade do bairro, ganhou o concurso do baile do teatro
República, próximo à praça Tiradentes, com uma fantasia de lantejoulas
inspirada num morcego do Nordeste, de onde vinha, e daí em diante passou
a ser chamado Madame Satã, por associação ao filme homônimo de Cecil
B. DeMille.

Bạn đang đọc truyện trên: Truyen2U.Pro

#hjsf