Areia de ampulheta

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Ah, você está aí? Desculpe. Nem tinha percebido. Estou mesmo ficando velho, não ligue. Mas me conta, não foi sua mãe quem mandou você aqui, foi? Porque se foi, eu... Quero dizer, acho que poderia agradece-la por mim, não é mesmo? Ela vem sendo outra mulher desde que caí aqui, neste leito de hospital. Mas senta aqui na beiradinha, me conta, não deixe este velho tagarelando sozinho. E Juan? Conseguiu a bolsa para a Europa? Eu sabia que sim! Mande um abraço e um parabéns meu. Ele sempre foi um garoto muito esperto, certeza de que era meu neto! Meu neto! Você lembra de quando... Daquele dia em que o vi ainda pequenininho, no seu colo? Lembra? Aquele dia! Nem o pai o tinha visto ainda. Fui o primeiro! Meu netinho! Deve estar rapaz agora. Sempre soube que ia conseguir, é um Bastos nato! Não, por favor. Não me diga que ainda ri daquilo? Você ainda lembra? Sim, você lembra! Fui eu quem o furtou e levou para casa, você ainda estava com a barriga aberta no hospital. Você lembra? Furtei meu neto bem debaixo dos bigodes do médico! Quando cheguei em casa, o Jorge levou as mãos pra cara, pasmo. Estava se arrumando para ir vê-lo e eu já estava com ele em casa. E, por falar nele, de que é feito Jorge? Foi Maria quem... Foi ela quem trouxe, outro dia mesmo, uma foto dele para eu ver. Estava outro. Nem de longe assume mais aparência com aquele Jorge do teu tempo. Coitado. O homem está morto sobre as pernas. Vocês têm se falado? Eu sabia, sabia disso, eu... Olha, você... Não acho que pode erguer um muro entre eles dois, se o Juan vai pro exterior eu acho que... Bem, você devia contar! Ele é pai, não pode fazer isso a ele. Olhe para mim, onde eu estou. Não gostaria que sua mãe tivesse levado você de mim quando ainda me tratava por papai. Hoje eu... Eu não... Sabe? Eu apenas não gostaria disso, de jeito nenhum. Eu sei que esse assunto a aborrece, me perdoe. Mas acho que deveria fazer como digo, Jorge vai gostar de saber do filho, das conquistas dele. Talvez até se aprume, coitado. Não pode tirar o... Sua mãe? Foi ela quem fez? Ah, sua mãe. Foi Maria quem veio aqui outro dia mesmo, na verdade já faz umas semanas, mostrou-me também sua mãe pelo celular. Ela continua... Por que ela não veio? Gostaria de vê-la uma vez mais, nunca se sabe o quanto este coração velho ainda pode bater. Foi ela quem fez? Continua ótima cozinheira. Saberia distinguir o aroma dos pães dela em meio a dezenas de outros, é verdade sim, eu saberia! Que bom que lembrou de mim. Agradeça-a como eu o faria. Que bom que não esqueceu este velho aqui. Maria? Sim, veio. Conversamos um bom tempo. Ela perguntou por você. Também não a tem visto? Faz mal. Nunca foi nada nossa, mas sempre gostou muito de nós, da sua mãe... Devia ir vê-la qualquer dia desses, ia ficar contente. Leve o Juan para vê-la também. Não esqueça que foi ela quem limpou as primeiras fraldas dele! É, ia ficar contente mesmo. Foi a única pessoa com quem conversei nessas semanas. As enfermeiras? Bah, que nada! Mal me dão boas-tardes. A que vem me trazer o almoço, vem com a bandeja numa mão e o telefone na outra. Parece que... Não, não sei bem... É jovem, não gosta desse papo de gente velha, decerto. Quando eu tinha a idade dela, também não devia gostar. E lá ainda nem existia internet, essas coisas... Minhas companhias são as horas, o teto, os noticiários de TV. Passa o dia inteirinho ligada, já é tão presente em minha vida quanto sua mãe foi um dia. Não reclamo. Vez por outra alguém se lembra deste velho aqui e então posso desligar a TV por algumas horas. Hoje foi você. Aliás, que bom que veio, estou tão contente! Mas conta mais, como anda o novo emprego? Espero que esteja bem. Isso é mesmo muito bom, adoro este sorriso assim, fica ótimo em você. O mesmo sorriso da sua mãe quando tinha a sua idade... Sabe que às vezes gosto de lembrar o dia em que nasceu? Gosto, gosto sim! Gosto muito! Poderia jurar que só me fiz homem naquele instante em que botei os olhos em você, toda pequenininha, esperneando e chorando. Era espevitada desde o berço. Você foi o primeiro arrependimento que não tive na bagagem de toda a minha vida. O primeiro. Minha filha. Eu nunca vou esquecer o seu nascimento... Ah, mas já? Tudo bem, não vou tomar mais do seu tempo. Sei que precisa ir. Mas antes, dá-me cá um beijo. Dá cá um outro beijo nesse velho, e leva um meu também. Não deixe de entregar os meus abraços e parabéns. Mande lembranças à sua mãe, e lhe agradeça o pão por mim. Agora vá, vá. Não gostaria que chegasse atrasada, sei o quanto emprego está difícil. Só tome cuidado, esse trânsito, a gente não pode prever... Como? O que eu gostaria de você antes de ir? Mas que pergunta. É claro que... Eu acho... É. Eu gostaria que me chamasse de papai uma outra vez... Papai, com certeza. Não, por favor, não ria. É que talvez nem possamos mais... Não sei, nada se pode prever deste lado de cá. É que talvez eu não tenha outra oportunidade de pedir isso a você, e acho que só estou me prevenindo.

*** ***

A forma da lágrima tremulava no queixo contraído.

A fita acabou, com ela as forças da mulher que a ouvira até aqui.

A gota caiu, espalhou-se nalgum lugar. Nas pernas dela, quem sabe. No carpete.

O pai havia morrido naquela semana. A enfermeira vinha lhe dizendo uma coisa há tempos. Que o seu pai estava solitário. Que queria ter companhia. Uma coisa triste assim, que dói fino no senso macio da alma. Tinha mais conserto não. Que tarde já era.

Coitado dele. Para não estar só em presença do câncer e da TV, ensaiava conversas consigo, com a filha, com a esposa. Com a Maria. Com o Jorge. Com o Juan. Para quando fossem visita-lo ter assunto. A enfermeira achou bom gravar, dar à família depois da sua viagem. Assim, pensava ela, não esqueceriam o que lhe faziam.

O dedo indicador da filha apertou o replay e o áudio chiado voltou lá do comecinho. Do zero, a tortura do remorso. Remorso desses impregnado no luto, que velam a gente numa culpa que parece não ter fonte nem fim.

Poucos meses depois, a fita repousaria esquecida no fundo dalguma gaveta de cômoda e o seu conteúdo no fundo doutra gaveta da mente. E aqui tomamos uma difícil reflexão sobre o ciclo, o tempo e o remorso humano.

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